quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 4



12) A discussão "dentro do templo x fora do templo"
A questão “Dentro x Fora do Templo” aparece no livro e nos artigos de Dorneles disponibilizados na net. O argumento é: "os hebreus até usavam tambores em momentos de adoração, mas fora do templo, por isso não devemos usá-los dentro das igrejas. Tambores não entraram no templo e não devem entrar na igreja!"

Creio que esse argumento merece ser analisado mais criticamente. Não adoramos no Templo e, incrivelmente, nem temos o Templo como nosso modelo de práticas de culto. Qualquer culto cristão, seja ele feito num prédio ou debaixo de uma árvore, é “fora do templo”. Casas cristãs de culto não são “templos judaicos”.

Nossas casas de culto, que chamamos de “igreja”, não são “o Templo de hoje”. E nossa liturgia tem pouco a ver com a liturgia do Templo (com exceção dos princípios).

Muitas coisas deixaram de entrar no serviço do Templo [crianças, mulheres, gentios] mas nem por isso sua ausência deve servir de "padrão" para hoje. Por que então se singulariza a suposta ausência dos tambores e se omite a confirmada ausência de outros elementos?

Qual o princípio por trás da ausência das crianças no serviço do Primeiro Templo, por exemplo? Aplicando-se o método de interpretação de Dorneles, deveríamos deixar as crianças fora da igreja, pois não entravam no templo.

Isso mostra que o raciocínio "se tambores não entraram no templo judaico, não devem entrar na igreja" é discutível, pois a estreita comparação "templo-igreja" é discutível. O que mais não entrava no templo judaico? Eu não poderia entrar, por ser mulher. E provavelmente você, leitor, também não, por ser gentio.

Uma vez, Paulo foi condenado pelos judeus sob a falsa acusação de ter levado um efésio chamado Trófimo para dentro do templo, além do espaço permitido aos gentios (At 21:28,29).

28 "- clamando: Varões israelitas, acudi; este é o homem que por toda parte ensina a todos contra o povo, contra a lei, e contra este lugar; e ainda, além disso, introduziu gregos no templo, e tem profanado este santo lugar.
29 - Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, e pensavam que Paulo o introduzira no templo."

Se Dorneles estivesse certo, o discurso dos judeus seria aplicável até hoje, e cenas como essa deveriam se repetir a cada sábado nos “templos”.

Outro problema é que a adoração bíblica não se restringia ao que acontecia no Templo. Apesar de ser o centro de adoração por excelência, o templo não representava toda a experiência de adoração do povo de Israel. O que se fazia no Templo tinha sua função, mas fora do Templo o povo adorava a Deus em cultos genuínos, com vários instrumentos e sob a aprovação divina.

Ellen White classifica como “culto” e “louvor” várias cenas de adoração fora do templo. Ela chama de “culto”, por exemplo, a música feita pelos profetas (ao ar livre) em 1 Sm 10:5 (Patriarcas e Profetas, 610).

E a ironia é: o transporte da arca, o evento que marcou a suposta "reforma musical", aconteceu ao ar livre! Assim, a discussão "dentro x fora do templo" perde muito o seu sentido.

Conclusão
O livro "Cristãos em busca do êxtase" é um excelente levantamento histórico do carismatismo e do pentecostalismo. Também faz uma ótima análise do papel da música nesse processo. No entanto, ao usar a Bíblia para analisar a música sacra, o autor apenas fez eco a argumentos usados contra a música contemporânea já fartamente refutados.

É hora de levarmos a discussão sobre música e adoração a um outro nível, mais alto, mais comprometido com a Bíblia. Grande parte das publicações sobre música começam afirmando que isso não é uma “questão de gosto”, que devemos saber a “vontade de Deus”. No entanto, após essa introdução bem-intencionada, os autores passam a expor suas opiniões pessoais costuradas com versos citados pela metade, descontextualizados, mal compreendidos e mal aplicados.

É incrível como a discussão sobre música parece ocorrer numa dimensão paralela, num universo onde a exegese é tosca, ilógica e a Bíblia é pisoteada. Ao adentrar nessa discussão, precisamos manter o mesmo nível, seguir as mesmas regras de interpretação bíblica que usamos em outros assuntos. Infelizmente, os artigos de Dorneles (um deles é parte de um capítulo de seu livro) não contribuíram para isso.

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 3


8) Dorneles usa o argumento “os salmistas ainda não tinha luz”
Para confirmar e esclarecer as teorias de seu livro, Dorneles lançou um artigo chamado "O canto do Senhor". Nele, ele escreve sobre o Salmo 150:

“quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Dorneles supõe que ao incentivar o uso de tambores, Davi ainda não tinha luz (conhecimento revelado) sobre o assunto. Dorneles não faz essa suposição baseado na Bíblia, mas num salmo apócrifo (veja próximo tópico).

Não cremos em inspiração verbal, mas acontece que essa proposta de Dorneles é semelhante à dos que adotam o método histórico-crítico de interpretação bíblica. Quer dizer que os compiladores dos Salmos não foram dirigidos pelo Espírito Santo, compilando para todas as gerações posteriores algo que apóia o que Deus supostamente já havia proibido? Os compiladores posteriores dos Salmos não repararam na letra dos Salmos “sem luz” que incentivam o uso da percussão?

Um outro autor, Gilberto Theiss, escreveu sobre o Salmo 150: “provavelmente, tenha sido escrito em um momento histórico da vida de Israel onde não havia ainda uma clara instrução divina acerca da forma apropriada para a adoração litúrgica”.

Isso é grave, pois uma afirmação desse porte está á beira de negar a inspiração plenária das Escrituras. Em quais partes dos Salmos ou da Bíblia como um todo poderíamos confiar, então? Não há nenhuma indicação bíblica de que o argumento da “falta de luz” seja verdadeiro. Há bastante instrução litúrgica na Torah. O autor do Salmo 150, bem como do 149, do 81, etc foram divinamente inspirados e não houve nenhuma correção posterior ou contradição do que eles escreveram sobre percussão.

Concordando com Dorneles, Gilberto Theiss, escreveu: “No tocante à adoração musical, o povo progressivamente foi abandonando os velhos costumes egípcios. Entre esses costumes que foram abandonados, destacamos as danças e o uso de tambores.”

A Escola dos Profetas (onde os alunos usavam percussão), os Salmos e textos bíblicos e rabínicos que falam claramente da percussão e da dança em celebrações religiosas refutam isso. Os hebreus usavam percussão e continuam usando. Os hebreus dançavam e os judeus modernos continuam dançando. Não precisamos distorcer textos e reescrever fatos históricos apenas para combatermos a dança. Existem outros argumentos para isso.

Além disso, o argumento da “falta de luz” também atinge as Escolas de Profetas. Deus criou uma instituição que ensinava música sacra com tambores. Talvez, o próprio Deus não tivesse luz sobre a música ideal ainda... Um pensamento absurdo.

O argumento da “falta de luz” gera um blackout...

9) Dorneles confundiu o Salmo 150 com o Salmo 151 (apócrifo)
Para dar força ao argumento da “falta de luz”, Dorneles comete uma gafe incrível no artigo “O canto do Senhor”. Para comprovar que o incentivo ao uso de tambores do Salmo 150 foi escrito antes da tal “reforma musical” de Davi, ele cita um comentário a respeito de um salmo que não existe na Bíblia!

Ele diz:
“Entre outras fontes de especialistas, a publicação The Septuagint Version (Zondervan: Grand Rapids, MI), diz que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”. Nesse caso, quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Antes de tudo, seria importante saber quais são essas “outras fontes de especialistas”. Suspeito que isso seja apenas um recurso retórico para dar um falso peso acadêmico à bobagem que vem logo depois: a citação do apócrifo Salmo 151, presente na Septuaginta, que nada tem a ver com o Salmo 150.

Dorneles usa a versão Septuaginta para afirmar que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”, mas a Septuaginta traz isso no Salmo 151 (nao-inspirado) e não no 150.

Para ler o Salmo 151 on-line:
Em grego: http://www.septuagint.org/LXX/Psalms/151
Em inglês: http://ecmarsh.com/lxx/Psalms/index.htm

O que tem a ver um Salmo com o outro? Nada. Um é apócrifo, o outro é inspirado. Um traz informações sobre a data de sua composição, o outro não. Claramente Dorneles não percebeu que estava analisando o salmo errado. Até agora não encontramos nenhum esclarecimento ou errata de sua parte. Enquanto isso, o equívoco se alastra pela internet.

(O site Advir retirou o texto do ar, e o site musicaeadoracao apenas suprimiu esse trecho, mas manteve a argumentação sem divulgar nota esclarecedora)

10) Dorneles coloca os salmistas em desobediência
“Naquele dia, foi que Davi encarregou, pela primeira vez, a Asafe e a seus irmãos de celebrarem com hinos ao Senhor” (1Cr 16:7).

Asafe, que participou do transporte da arca e assumiu a liderança da música após isso, escreveu: “Comecem o louvor, façam ressoar o tamborim, toquem a lira e a harpa melodiosa." (Sl 81:2)

Asafe, um grande mestre da música em Israel, desconhecia a tal “reforma musical” que supostamente teria proibido os tambores. E é difícil conciliar a argumentação de Dorneles com o título do Salmo 5: “Ao mestre de canto, para flautas. Salmo de Davi.”

O compositor deveria acrescentar ao título: “eu não tinha luz quando fiz isso”, já que o acompanhamento deveria ser com flautas. No mínimo, os compiladores deveriam ter tomado alguma providência.

11) Dorneles usa a falácia da “falsa analogia”
Ele compara o uso de instrumentos musicais a costumes inadequados, como o uso de bebida forte, a poligamia e a escravidão:

“Da mesma forma que a revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão, iluminou esses fatos que aos poucos foram sendo eliminados, a questão da música também deve ser objeto de estudo para compreensão e juízo acertados.”

A sutileza do erro aqui consiste em comparar coisas incomparáveis. Os costumes inadequados citados foram claramente corrigidos pelo Senhor. Através de claros preceitos e exemplos, vemos claramente Deus corrigindo as questões da bebida forte, da poligamia e da escravidão (essa, mais sutilmente). Para cada uma dessas práticas errôneas, temos um “Assim diz o Senhor” em sentido contrário.

Isso não acontece com a música como Dorneles acha que aconteceu: uma reforma musical divinamente instruída que baniu instrumentos da adoração e que seria aplicável ainda hoje. Dorneles compara correções claramente presentes na Bíblia com uma suposta correção imaginada.

Onde está essa "revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão" no caso da música?
No mínimo, deveria ficar biblicamente evidenciado que a ordem bíblica contrária aos tambores é tão clara e direta quanto a ordem bíblica contrária à bebida forte ou à poligamia. Do contrário, incorre-se aí na falácia da falsa analogia.

Continua...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 2


6) Dorneles usa o templo judaico como normativo para o culto cristão
Ele escreveu:

“O estudo dos textos bíblicos que citam os instrumentos musicais esclarece que o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.”

Por orientação do próprio Deus, não entravam no templo várias outras coisas: mulheres, crianças, estrangeiros, aleijados, etc. A pergunta que devemos responder é: o templo é o nosso modelo de culto e música cristãos? Dorneles acha que sim:

“Uma vez que o templo de Israel era uma representação do santuário celestial e do trono de Deus, a música na igreja hoje deve ter sua referência maior na música usada nesse templo.”

Já é bem comum o argumento “se não tinha no templo de Jerusalém, não podemos usar na igreja”. Na realidade, ao mirar na percussão, esse argumento atinge quase todos os instrumentos atuais.

O palestrante Daniel Spencer resume essa teoria, dizendo que “nosso Templos são cópias das igrejas primitivas, cópias das sinagogas, cópias do templo de Salomão, cópia do santuário, cópia do santuário do céu.” Mas isso também não é verdade e uma simples comparação do propósito e da liturgia do templo judaico com o culto cristão revela o equívoco.

Nosso culto não tem muita coisa a ver com o modelo de culto primitivo (nas casas). O culto da igreja primitiva até se assemelhava em certos aspectos às reuniões da sinagoga. Mas a sinagoga e o templo apresentam profundas e marcantes diferenças entre si. A começar pela principal atividade do templo: o sacrifício. Além disso, em vários aspectos a sinagoga não tem absolutamente nada a ver com o templo (participação de leigos, mulheres, gentios, leitura e explicação da Palavra, etc).

Bastaria um exemplo pra expor o equívoco desse argumento: Não havia pregação no templo, e nosso culto hoje é centralizado na pregação.

O ministério levítico, inclusive o musical, era cerimonial, conectado aos sacrifícios e ofertas, E remunerado. Não é um modelo a ser estritamente seguido, mas dele podemos extrair princípios. O próprio Bacchiocchi, que já defendia muitas dessas idéias agora expostas por Dorneles, menciona esse caráter cerimonial da música do templo em:

“O livro de Crônicas apresenta o ministério musical dos levitas como parte da apresentação da oferta diária no templo." (O cristão e a música rock, 205)

Nos textos onde cita o templo judaico, Ellen White não traça paralelos literais com a igreja. Ela extrai princípios de adoração e não listas inflexíveis de instrumentos. “Da santidade atribuída ao santuário terrestre, os cristãos devem aprender como considerar o lugar onde o Senhor Se propõe encontrar-Se com Seu povo" (Testemunhos Seletos, vol. 2, 193). Nesse texto, ela usa a santidade do templo para extrair um princípio para o culto cristão: a reverência.

7) Dorneles usa a regra do “não Está Escrito aqui, então está proibido”
Dorneles transforma uma lista de instrumentos que não inclui os tambores numa “proibição” aos tambores. A ausência dos tambores na lista de instrumentos do templo é entendida como uma proibição divina aos mesmos. No entanto, isso é um desrespeito ao princípio reformado “tota scriptura” de interpretação, já que os salmos claramente incentivam o uso de tambores.

Não existe em parte alguma da Bíblia a proibição “não usem tambores”. É uma proibição inferida, imaginada a partir da tal lista. Mas existem vários textos com o incentivo “usem tambores” no próprio hinário do Templo (Salmos)! Assim, textos claros deveriam ter a precedência sobre textos obscuros. Não há nenhuma explicação para essa lista ter prioridade sobre os outros inúmeros textos claros.

E Dorneles fica devendo uma explicação sobre que tipo de raciocínio ele utilizou para conseguir igualar uma “não menção” a uma "proibição". Os guardadores do domingo amariam essa explicação: eles insistem que a “não menção” ao mandamento do sábado no Novo Testamento representa uma invalidação do mesmo. Estaria Dorneles vendo inteligência nesse horroroso argumento anti-sábado?

Dorneles escreveu posteriormente: “E isso fica tão claro para Israel que ao longo de mais de 500 anos, a lista é repetida em diversos textos (I Crônicas 15:16, 19-24, 28, 16:5, 42, 23:5, 25:1, 6, II Crônicas 5:12-13, 29:25-27, Neemias 12:27, Isaías 39:20). A lista é consistente, não havendo qualquer relevante alteração entre os textos.”

Vamos analisar essas tais listas :
1 Cr 15:16 - alaúde, harpa, címbalo. Aqui Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 15:19-24 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui Deus “proibiu” só o shofar.
1 Cr 15:28 – shofar, alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui, meio indeciso, Deus permitiu a volta da trombeta e do shofar.
1 Cr 16:5 – alaúde, harpa, címbalo. Após ter permitido, Deus muda de idéia e “proíbe” a trombeta e o shofar novamente.
1 Cr 16:42 – trombeta, címbalo e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Se o v.5 e o v.42 representam uma lista só, menciona “outros instrumentos” além desses, e a lista não é consustente. Se são duas listas, elas não seguem um padrão, por isso também não é consistente.
1 Cr 23:5 – não lista instrumentos específicos.
1 Cr 25:1 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 25:6 - alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
2 Cr 5:12-13 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Mais uma vez, a lista não segue um padrão consistente e inclui “outros instrumentos”.
2 Cr 29:25-27 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Deus “proibiu” só o shofar.
Ne 12:27 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
Is 39:20 – não existe esse texto
Acrescentamos:
2 Cr 20:28 - alaúde, harpa, trombeta. Deus “proibiu” o címbalo e o shofar.
Ed 3:10 - címbalo e trombeta. Aqui, Deus “proibiu” o alaúde, harpa e o shofar.

Ao contrário do que Dorneles afirma, a lista não é tão consistente e há sim relevantes alterações entre os textos. Se a teoria do “não está escrito, então está proibido” estiver correta, ela mostra que Deus estava indeciso e não sabia se queria mesmo autorizar ou proibir, afinal..

E se consultássemos os especialistas (salmistas)? A citação de instrumentos na adoração nos Salmos é riquíssima:

Trombetas (Sl 98:6), Shofar (Sl 98:6), Harpa (Sl 43:4; 98:5), Percussão (Sl 81:2; 149:3), Flauta (título do Salmo 5), Alaúde (Sl 71:22), etc.

Se houve de fato uma “proibição” divina ao uso de instrumentos, os salmistas aparentemente desconheciam ou a desobedeceram, pois incentivam o uso de uma gama enorme de instrumentos. É mais correto pensar que tal “proibição divina” a instrumentos de percussão nunca existiu.

Continua...

"Cristãos em busca de êxtase" e a música


O livro "Cristãos em busca de êxtase" (Unaspress) é uma excelente pesquisa histórica e contém informação preciosa nesses dias de explosão neo-pentecostal. No entanto, na parte bíblica do livro há uma argumentação que destoa do bom nível da pesquisa. A análise bíblica que o autor faz da música sacra contém falhas, especialmente ao usar o episódio do transporte da arca como uma revelação normativa para a música cristã. Trechos do livro estão disponíveis na net em forma de artigos e o leitor pode encontrá-los facilmente.

Resumindo a idéia de Dorneles: quando Davi transportou a arca ao som de tambores, tudo deu errado, e Uzá morreu. Quando Davi excluiu os tambores, tudo deu certo. E, segundo ele, após esse episódio, o tambor foi excluído do templo.

Ele escreveu que “o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.” E acrescentou que “a exclusão do tambor no templo pode indicar também que esse instrumento (...) deveria estar fora do culto”.

Ele sugere que Deus orientou não ter tambores, ou seja, Deus orientou a “exclusão do tambor” e que por causa dessa orientação divina, tambores deveriam “estar fora do culto” e “sem recomendação”. Apesar de não afirmar claramente que “Deus proibiu os tambores”, há uma “proibição” implícita nos argumentos de Dorneles.

A seguir, algumas observações sobre a argumentação dele.

1) Dorneles coloca erradamente a culpa nos tambores
Fazendo essa contraposição entre “com tambores deu errado” e “sem tambores deu certo”, Dorneles leva os leitores a concluírem exatamente isso: a culpa foi dos tambores. Se ele não teve essa intenção, toda a sua argumentação foi inútil para qualquer outro propósito, visto que ele destaca apenas os tambores e ignora outros elementos da narrativa.

O equívoco de Dorneles aqui é básico: nem a Bíblia nem Ellen White sugerem que o problema do primeiro transporte teve algo a ver com tambores. O problema foi a “violação de um mandado explícito”, foi desobedecer às claras instruções divinas quanto ao transporte da arca (Êx.25:14, Nm.4:15, 7:9 e 10:21).

Nem a Bíblia e nem Ellen White tocam na questão da música ou do uso de instrumentos musicais como sendo a causa da morte de Uzá. Segundo White, “houve uma desatenção direta e indesculpável às determinações do Senhor.” Nada sobre a questão musical.

Ela acrescenta que “o Senhor não podia aceitar o serviço, porque não era efetuado de acordo com Suas orientações”, mas novamente não cita a música. Ela não inclui a música entre a “declaração compreensível da vontade de Deus em todas estas questões” cuja negligência “desonrava a Deus”. E, finalmente, Ellen White afirma que Davi foi “levado a compenetrar-se, como nunca dantes, da santidade da lei de Deus, e da necessidade de obediência estrita”(Patriarcas e Profetas, 705 e 706). De novo, nada sobre a música.

Ao extrair homileticamente uma "lição musical" desse episódio (que é possível), parece que Dorneles viu algo que a Bíblia não mostrou, e que Ellen White também não viu. É um equívoco usar o transporte da arca para reprovar o uso de certos instrumentos musicais, pois a Bíblia simplesmente não diz isso.

2) A argumentação de Dorneles serve para condenar a flauta também.
Curiosamente, podemos substituir “tambor” por “flauta” em quase toda argumentação de Dorneles sem prejuízo para a sua linha de raciocínio e sem ferir os textos bíblicos usados. Veja:

“Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com flautas (1Cr 13:8 e 2Sm 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado.
“Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve flautas, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Cr 15:16). O transporte deu certo.”

E então? A culpa é dos tambores ou das flautas? E ainda há outros parágrafos:

“A lista dos ‘instrumentos do Senhor’ aparece em diversas ocasiões, sempre sem inclusão das flautas (ver 1Crônicas 25:1 e 6, 16:5, 2Crônicas 5:12 e 13).”
“A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de flautas, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8).”
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com flautas (ver Isaías 5:12).”

E a conclusão parafraseada também seria: “o textos de Isaías 5:12 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

Os flautistas precisam ser alertados disso, urgentemente! Mas estranhamente, parece que Dorneles ainda não escreveu nada contra as flautas.

3) A argumentação de Dorneles é favorável à dança
Dorneles divide o transporte da arca em 2 tentativas, destacando dois pontos:
1) a primeira teve dança e tambor, e deu errado.
2) a segunda não teve tambor, e deu certo.

Nas palavras do autor:
"Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com tamboris e Davi dançou e se alegrou, ao ritmo da banda (1Crônicas 13:8 e 2Samuel 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado."

Mas de acordo com 2 Sm 6:14, Davi dançou na segunda parte do transporte (da casa de Obede-Edom até Jerusalém). Isso compromete o raciocínio do autor. Se na segunda parte a viagem foi abençoada por Deus, então isso coloca a dança de Davi sob a iluminação divina, pois o transporte deu certo.

Dorneles escreveu: "Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Desta vez, ele orientou que ninguém conduziria a arca, senão os levitas (1Samuel 15:2). Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve tambor, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Crônicas 15:16). O transporte deu certo."

Não teve tambor, mas teve dança. Se o autor vincula o "dar certo" com a ausência de tambores, alguém poderia usar o mesmo argumento e vinculá-lo à presença da dança. Logo, o mesmo argumento que bane o tambor, consegue mais do que pretendia e acaba sacralizando a dança.

Algumas versões da Bíblia não registram “dança” durante o trajeto em que Uzá morreu (de Quireate-Jearim até Obede-Edom) mas usam o verbo “alegrar-se”. Questionado sobre isso, Dorneles responde que o verbo usado na primeira tentativa, em 2 Sm 6:5 (sachaq), pode ser traduzido como “dançar”. Para ele, na primeira tentativa houve tambores e dança (sachaq), e o transporte deu errado.

Mas isso só gera mais problemas para a teoria de Dorneles. Ao ser repreendido por Mical, Davi responde dizendo que faria de novo (2 Sm 6:21), e ele usa a mesma palavra de 2 Sm 6:5 e 1 Cr 13:8 (sachaq).

Resumindo: usando a tradução preferida de Dorneles, Davi “dançou” (sachaq) na primeira tentativa, “dançou” na segunda, e ainda afirmou que “dançaria” (sachaq) de novo:

“Pois eu continuarei a dançar em louvor ao SENHOR”. (2 Sm 6:21) NTLH
“foi perante Senhor que dancei; e perante ele ainda hei de dançar". Almeida Atualizada
yo danzaré ante Yahveh”. Bíblia de Jerusalém (1976)
“therefore I will play, and dance before the Lord.” Septuaginta.

Se nesse episódio houve de fato um “reforma musical” promovida por Davi, parece que o próprio Davi não entendeu direito. Ou então, a ordem de Deus teria sido: “tirem os tambores e comecem a dançar!” De qualquer forma, a argumentação de Dorneles não faz sentido.

Dorneles afirma que “a questão que procurei mostrar no meu texto é a mudança da música do primeiro para o segundo transporte. Essa mudança certamente foi resultado o mandato de Deus a Davi (...)”.

Então, a mudança não foi tanto musical, pois além de Davi dançar e afirmar que continuaria dançando, Ellen White descreve assim o segundo trajeto:

“Outra vez pôs-se em movimento o longo séquito, e a música de harpas e cornetas, trombetas e címbalos, ressoava em direção ao céu, misturada com a melodia de muitas vozes. "E Davi saltava. ... diante do Senhor" (II Sam. 6:14), acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico.”

A dança de Davi acompanhava o ritmo. Era “música e dança, em jubiloso louvor a Deus”. Quando artculistas dizem a música do segundo trajeto foi "branda", "suave", "menos ritmada", trata-se de especulação, imaginação e inferência. O fato é que Davi dançou acompanhando o ritmo da música e depois ainda afirmou que continuaria dançando. Isso coloca uma interrogação na teoria da suposta “reforma musical que excluiu os tambores”.

4) A descrição de Dorneles é diferente da descrição de Ellen White
Ellen White não descreve o primeiro transporte da arca em tons negativos como Dorneles o faz. Inclusive quando fala da música.

Sobre a música do segundo transporte da arca, Dorneles diz: “Embora informe que Davi tenha dançado (1Cr 15:29), o cronista repete várias vezes a lista de instrumentos, que não sugere uma música feita para dançar.”

Talvez a música não tenha sido feita para dançar, mas provocou dança, e Davi dançou seguindo o ritmo da música, como diz Ellen White: Davi estava “acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico”. Se ele acompanhava o ritmo, o andamento da banda, era porque a música era propícia para isso.

Falando sobre o fatídico 1º trajeto, Ellen White diz: “era seu intuito tornar aquele ato um espetáculo de grande regozijo e imponente manifestação.” Não era uma multidão seguindo um trio elétrico de carnaval. Ellen White diz que “Davi estava radiante de santo zelo.”

Ao contrário de Dorneles, ao falar da música do primeiro transporte, Ellen White não usa expressões negativas. Ela descreve essa música como “cânticos de regozijo, unindo-se melodiosamente uma multidão de vozes com o som de instrumentos músicos”. Era “uma cena de triunfo”, com “alegria solene”(Patriarcas e Profetas, 704). As palavras "melodiosamente" e "solene" devem ser destacadas.

Agora veja como Dorneles faz uma leitura tendenciosamente negativa da música do episódio:
"A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de tambores, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

No entanto, levando em conta a informação bíblica e de Ellen White, esse parágrafo acima poderia ser reescrito assim:
“A música que deu o ritmo da dança de Davi, sem flautas, foi chamada de “música de Deus” (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que acompanhou a “cena de triunfo”, "melodiosamente" com “alegria solene”, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

Esse parágrafo está perfeito, segundo a Bíblia e Ellen White, e tem um tom diametralmente oposto ao que Dorneles escreveu. Percebam como a argumentação de Dorneles é frágil e depende de contorcionismos linguísticos, mensagens nas entrelinhas, jogo de palavras, omissão de trechos (que é o próximo item).

5) Dorneles omite pedaços de textos bíblicos
Além de omitir as flautas em sua argumentação contra os tambores, Dorneles faz citações estranhas, amputadas, para dar uma impressão de que a Bíblia condena apenas os tambores. Por exemplo, ele escreveu:
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com tambores (ver Isaías 5:12 e 24:8 e 9).”

E completa dizendo que “os textos de Isaías 5:12 e 24:8 e 9 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

O problema é que esses textos também falam de harpas, alaúdes e flautas. Por que extrair cirurgicamente apenas os tambores, dando-lhes uma conotação negativa? Veja os textos bíblicos na íntegra:

Harpas e liras, tamborins, flautas e vinho há em suas festas, mas não se importam com os atos do Senhor, nem atentam para obra que as suas mãos realizam.” (Is 5:12)
“O som festivo dos tamborins foi silenciado, o barulho dos que se alegram parou, a harpa cheia de júbilo está muda. Já não bebem vinho entoando canções; a bebida fermentada é amarga para os que a bebem.” (Is 24:8-9)

Os leitores menos atentos e não-bereanos são induzidos por Dorneles a concluir que Deus está pronunciando juízos apenas contra quem usa tambores, o que não é verdade. A menos que Dorneles também esteja publicando textos contra esses outros instrumentos por aí, o que não é o caso, essa é uma péssima maneira de usar a Bíblia.

Continua...

Contra o relativismo



por Luiz Felipe Pondé


O que você faria se estivesse a ponto de assistir a um ritual de antropofagia? Interromperia (sem risco para você)? Ou deixaria acontecer em nome do relativismo cultural (essa ideia que afirma que cada um é cada um, que as culturas devem ser respeitadas em sua individualidade e que não podemos compará-las)?

No primeiro caso, você seria um horroroso descendente dos "jesuítas"; no segundo você seria um relativista chique. Sempre suspeitei que esse papo relativista fosse blablablá. Funciona bem em aula de antropologia, em bares, em parques temáticos e lojas de curiosidades. É evidente que "jesuítas" de todos os tipos fizeram horrores nas Américas. Todo adulto bem educado sabe que é feio condenar cultos à lua ou à chuva. Mas há algo no relativismo cultural que me soa conversa fiada: o relativismo cultural morre na praia quando você é obrigado a conviver com o Outro. E o "Outro" nem sempre é legal.

Se você aceita a antropofagia em nome do respeito à "cultura", aceita implicitamente a ideia de que o valor da vida humana seja subordinado à "cultura". A vida humana não tem valor em si. Todo estudante de antropologia sabe recitar esse credo. Quando confrontado com dilemas como esse, o relativista diz que se trata de uma situação meramente hipotética (hoje não existe mais antropofagia). Mas a verdade é que quando o relativista diz que a antropofagia é hoje quase nula, e, portanto, esse dilema não tem "validade científica", está literalmente correndo do pau porque "alguém" acabou com a antropofagia, não? Por que a antropofagia "acabou"?

Algumas hipóteses: 1) os antropófagos foram mortos por gripes ou em batalhas; 2) foram convertidos pelos horrorosos "jesuítas" e seus descendentes; 3) descobriram formas mais fáceis de comer e rituais que deixam as pessoas (isto é, os Outros) menos irritadas e com menos nojo. É importante conhecer o "lugar" da antropofagia nas religiões dos canibais, mas isso é apenas um "dado" antropológico. Uma descrição de hábitos (ruins). Mas o relativista tem que correr do pau mesmo, porque seu credo funciona bem apenas nas conversas de salão. A vida é sempre pior do que as festas. Relativistas culturais são, no fundo, puritanos disfarçados, gostam de "aquários humanos".

Os seres humanos são culturalmente promíscuos, e "a cultura" sem promiscuidade (trocas, misturas, confusões) só existe nos livros. Use internet, televisão, celulares, aviões e estradas, faça sexo ou guerra, e o papo do relativismo cultural vira piada. Na realidade, as pessoas lançam mão do argumento relativista somente quando lhes interessa defender a "tribo" com a qual ganha dinheiro e fama. O problema com o debate sobre os índios (ou qualquer outra cultura considerada "coitada") é a mitologia que ela provoca. Se, de um lado, alguns falaram dos índios (erradamente) como inferiores, bárbaros ou inúteis, por outro lado, os que "defendem" os índios normalmente caem no mito oposto: eles são legais e só querem viver "sua cultura", e eles não são "capitalistas" como nós, e blablablá. Índios gostam de poder como todo mundo, vide os índios "conscientes de seus direitos" devorando computadores, celulares e internet no Fórum Social, em Belém -ou ficam na idade da pedra mesmo e precisam que o Estado os defenda do mundo.

As culturas mais bem-sucedidas são predadoras e seduzem as mais fracas (ser mais bem-sucedida não implica ser legal). Por que levar medicina científica (invenção dos "opressores") para as aldeias? Não seria contaminação "cultural"? Vamos ou não brincar de "curandeiros"? Que tal abraçar árvores? Se você é católico e quer ser fiel aos seus princípios, você é um retrógrado; se você quer viver no meio da selva (com direitos adquiridos porque você é de uma cultura "coitada"), você é apenas uma tribo com direito a integridade cultural. O conceito de cultura é quase um fetiche do mercado das ciências humanas. Não que não existam culturas, mas o conceito na sua inércia preguiçosa só funciona no laboratório morto da sala de aula ou do museu. A vida se dá de forma muito mais violenta, se misturando, se devorando.

Nada disso é "contra" os índios, mas sim contra o relativismo como ética festiva. O oposto dele não é o obscurantismo, mas a dinâmica da vida real. O relativismo é um (velho) problema filosófico e um "dado" antropológico. Um drama, e não uma solução.


Extraído do Paulopes

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Nota aos fãs de Bacchiocchi

Amigos,

Ao expor as fraquezas e falhas na obra “O cristão e a música rock”, não estou fazendo campanha anti-Bacchiocchi. Pelo contrário. Ele já me foi muito útil em estudos e debates sobre vários assuntos (aqui, por exemplo), e considero sua obra “Imortalidade ou ressurreição” excelente. Melhor, inclusive, que a do sábado.

Mas estou seguindo exatamente as orientações de Bacchiocchi. Criticado por discordar de Ellen White em alguns assuntos, ele respondeu:

“É isso que significa ser um adventista comprometido? Seriam os adventistas cristãos de mente fechada que aceitam cegamente os seus ensinamentos tradicionais sem nunca testar a sua solidez bíblica? Se isso fosse verdade, então aqueles que nos acusam de sermos uma seita não estariam longe da verdade.” http://www.biblicalperspectives.com/endtimeissues/eti_87.html

Se Bacchiocchi pode discordar de Ellen White, por que eu não poderia discordar de Bacchiocchi?
Como ele conseguiu essa aura de intocabilidade entre nós? Se num próximo artigo sobre música eu vos mostrar que ele está biblicamente equivocado, vão continuar a me acusar de estar “atacando a igreja”, “promovendo apostasia”, “denegrindo a imagem”, etc?

Calma, amigos. Bacchiocchi não é "a igreja". Ele não é mais nem menos que ninguém. Foi um grande teólogo, mas não confundam “doutrina” com “opinião de Bacchiocchi”. E se ele lançou um livro internacionalmente conhecido, não é por causa de um bloguezinho como o meu que sua imagem será arranhada.

Minhas “acusações” não são acusações: são fatos, informação pública, e eu aponto as fontes. Eu argumento, mostro, comprovo. Que mal tem isso? Bacchiocchi discordou a vida inteira de muita gente, inclusive de posições tradicionais da teologia adventista (não quero causar mais escândalos, então descubra por você mesmo). Como um grande questionador que foi, ele ficaria decepcionado com o comportamente de seus admiradores.

Quem se sentiu ofendido com isso, desculpe-me: falta mais “adventismo” nessa flacidez espiritual que você chama de religião. É uma situação semelhante aquela: avisam o marido que sua esposa o está traindo, e o marido-traído fica magoado com quem contou, não com a esposa que o traiu.

Encerro com Ellen White:

“É importante que, ao defender as doutrinas que consideramos artigos fundamentais da fé, nunca nos permitamos o emprego de argumentos que não sejam inteiramente retos. Eles podem fazer calar um adversário, mas não honram a verdade. Devemos apresentar argumentos legítimos, que não somente façam silenciar os oponentes mas que suportem a mais acurada e perscrutadora investigação" (Evangelismo, p.166).

Meditem nisso, e parem de seguir a trilha do bezerro.

Basta de choro. Voltemos às argumentações.

Garlock e a tricotomia-dualista na música

Você já ouviu (ou leu) que, na música, a melodia afeta o espírito, a harmonia afeta a mente, e o ritmo afeta o corpo? Eu já. Várias vezes. E fui atrás da fonte de tão maravilhosa informação. Encontrei algumas, mas a mais proeminente foi Frank Garlock (coincidentemente, perdoem-me os fãs dele, mais uma das fontes de Bacchiocchi).

Frank Garlock é um autor de livros e palestrante conhecido nos Estados Unidos por combater fervorosamente a música cristã contemporânea. Numa análise parcial de seus vídeos e do livro “Music in the balance” não encontramos nada novo. Ele repete conceitos que escritores como Bob Larson, David Noebel e o próprio Garlock já vinham insistentemente escrevendo desde os anos 60.
Mas em Garlock encontramos um conceito que tem se alastrado na música adventista: a tricotomia. [1]

O conceito tricotômico na música
Em seus livros, Garlock sustenta a idéia de que a natureza triúna da música (melodia, harmonia e ritmo) corresponde à natureza do homem (espírito, alma ou mente, e corpo). Para ele, nossa natureza básica é o corpo, que é afetada pela qualidade básica da música: o ritmo. A harmonia afeta a nossa mente. E a parte mais nobre da música, a melodia, afeta o nosso espírito. [2]

Essa analogia é usada para condenar certos tipos de músicas rítmicas, já que o ritmo alimentaria a natureza carnal. O problema é que não há apoio bíblico para essa analogia. Ela parece fazer sentido e soa bem “espiritual”, mas, como veremos, flerta com a heresia gnóstica e não tem nenhuma credencial bíblica.

Nós adventistas não cremos na tricotomia. A nossa visão bíblica sobre o homem é monista (ou holística, integral), na qual o ser humano é uma unidade indivisível. Mas, esquecendo-se disso, Bacchiocchi repete o conceito de Garlock assim:

“Em seu livro Music in the Balance, Frank Garlock e Kurt Woetzel apresentam um conceito que era novo para mim, mas que achei ser digno de consideração. Eles explicam graficamente que:

MELODIA responde ao ESPÍRITO
HARMONIA responde à MENTE
RITMO responde ao CORPO” [3]

Em seus livros, sermões e palestras em vídeo, Garlock usa a palavra “mente” e a palavra “alma” relacionadas à harmonia. Na sua analogia, alma e mente parecem representar a mesma coisa.[4] Certamente o significado de "espírito, mente/alma e corpo" para Garlock não é o mesmo sentido para Bacchiocchi. Pelo menos não deveria ser.

Bacchiocchi completa: “A característica que define a boa música é um equilíbrio entre seus três elementos básicos: melodia, harmonia e ritmo.”[5] Mas logo após defender esse “equilíbrio”, ele se contradiz colocando os elementos da tricotomia numa escala de prioridades, como veremos a seguir.

O dualismo na música
Simplificando, o dualismo é uma idéia pagã e antibíblica que vê a natureza humana como material e espiritual. O material é o corpo, temporário, essencialmente mau. O espiritual é a alma ou a mente, que é eterna e boa.[6]

Veja a escala de importância na visão tricotômica do ser humano de Garlock:

1. Espírito – a parte mais importante do homem.
2 – Alma/Mente – a próxima em importância
3. Corpo – o menos importante[7]

Isso é um flerte com o dualismo: o corpo é “menos” e o espírito é “mais”.
E Bacchiocchi vai atrás de Garlock nessa idéia: “a ordem das prioridades da vida cristã com o espiritual em primeiro lugar, o mental em segundo e o físico em terceiro, deveria ser refletida na própria música.(...) A ordem apropriada entre os aspectos espirituais, mentais e físicos de nossa vida cristã deveria refletir-se na música cristã.”[8]

Eu até entendo o que ele quer dizer, mas a sua justificativa é inacreditável:

“A parte da música à qual o espírito responde é a melodia. Isto é sugerido por Efésios 5:18-19, onde Paulo admoesta os crentes: “mas enchei-vos do Espírito, falando entre vós em salmos, hinos, e cânticos espirituais, cantando e salmodiando”.[9]

Não entendi. Esse texto não diz que a melodia é a parte da música que afeta o espírito. Talvez ele esteja sendo influenciado por Garlock, que prefere a tradução da King James, onde o grego ‘psallo’ é traduzido “fazendo melodias”. Mas a Bíblia relaciona 'psallo' à mente também (1 Co 14:15). E não há porque preferir a tradução “fazendo melodia” em Ef 5:19.

Sobre ‘psallo’ em Ef 5:19, o Comentário Bíblico Adventista diz: “'tocar um instrumento', 'cantar hinos'. Esta palavra pode, portanto, referir-se à música instrumental ou ao canto em geral. Como já se falou de “cânticos”, alguns pensam que psallo se refere ao primeiro; mas outros sustentam que no NT esta palavra significa apenas ‘cantar’.”

Além disso, o conceito é musicalmente falho: fazer melodia requer ritmo.

E ele continua:
“A parte da música à qual nossa mente responde é a harmonia. Isto acontece porque a harmonia é a parte intelectual da música. Praticamente qualquer pessoa pode produzir uma melodia, mas é necessário um extenso treinamento musical para escrever e compreender os vários acordes (partes). Uma harmonia que soe bem só pode ser arranjada por um músico treinado. A harmonia, como a palavra sugere, harmoniza a melodia e o ritmo.[10]

Aqui não há citação bíblica, mas em Garlock nós encontramos o texto de 2 Co 10:5 que também não diz que a harmonia é a parte de música que afeta a mente. São afirmações soltas, que surgem ‘ex-nihilo’, sem fundamentação bíblica alguma!

E aqui também há uma falha musical: existem ritmos complexos e melodias que requerem intenso treinamento musical, assim como existem harmonias simplórias. Existem pessoas que conseguem fazer harmonia mas não conseguem reproduzir um ditado rítmico intrincado. A coisa não é “preto-no-branco” como querem Garlock e Bacchiocchi.

E finalmente, o ritmo:
“A parte da música à qual o corpo responde é o ritmo. A palavra ritmo deriva da palavra grega reo, que quer dizer “fluir” ou “pulsar” (João 7:38). O ritmo é o pulso da música, que encontra uma correspondência analógica com o pulso cardíaco.”[11]

O nosso corpo responde a muitos outros elementos musicais. O próprio Bacchiocchi cita vários exemplos de uso da música em terapias, anestesia e tratamentos em geral. Certamente isso tudo não acontece só com ritmo, mas com a música como um todo.

E fechando o raciocínio, novamente aparece a escala de prioridades de Garlock: “O cristão com uma ordem e equilíbrio escriturísticos em sua vida enfatiza em primeiro lugar o espiritual (Mateus 6:33), o intelectual ou emocional em segundo (II Coríntios. 10:5) e por último o físico (Romanos 13:14).”[12]

Nós adventistas cremos numa visão holística (ou monista) do ser humano. Ensinamos uma reforma de saúde justamente por crermos que cuidar do corpo à luz da Palavra também é “buscar primeiro o reino de Deus” (Mt 6:33). O corpo físico, na teologia adventista, tem muita importância, pois o ser humano é uma unidade indivisível. Há aqui uma confusão de termos. Os aspectos espirituais tem sim precedência sobre os terrenos, temporais. Mas o nosso corpo não deve ser classificado nessa sub-categoria, “menos”, desprezível.

Se Bacchiocchi não queria defender o dualismo para combater o ritmo, ele foi, no mínimo, confuso. E para refutar Bacchiocchi, ninguém melhor que... ele mesmo.

Bacchiocchi contra Bacchiocchi
Como aconteceu no caso do Salmo 150 , aqui também existe um caso de “hermenêutica por conveniência”. Bacchiocchi apresentou essa visão tricotômica/dualista do ser humano em “O cristão e a música rock”, mas estranhamente ele não defende essa visão do ser humano em sua excelente obra “Imortalidade ou ressurreição”. Veja:

“Tanto o corpo quanto a alma, a carne e o espírito são uma unidade indivisível”[13]
“A ênfase bíblica é sobre a unidade do corpo, alma e espírito, cada um sendo parte de um organismo indivisível”.[14]
“... o ato de criação material deste mundo, inclusive a do corpo humano, é ‘muito bom’ (Gn 1:31). Não há dualismo nem contradição entre o material e o espiritual, o corpo e a alma, a carne e o espírito, porque fazem todos parte da boa criação de Deus”.[15]

Essa sim é a visão adventista. Bacchiocchi denuncia: “... o ponto de vista dualístico clássico tem fomentado o cultivo da alma à parte do corpo...”[16]. E descreve a dedicação primária à vida contemplativa (vida espiritual) e o desligamento da vida secular como algo contrário à perspectiva bíblica, um dos resultados do dualismo.[17]

Uau! Que mudança de opinião! Nem parece o mesmo escritor... em qual dos dois autores devemos acreditar? Se somos unidade indivisível, não faz sentido a teoria tricotômica/dualista, pois somos afetados igualmente.

Ao defender o conceito holístico-bíblico da natureza humana, Bacchiocchi nos desafia a “considerar positivamente tanto os aspectos físicos quanto espirituais da existência”, pois “a maneira como tratamos nosso corpo reflete a condição espiritual de nossas almas”, e “a poluição física é também uma poluição espiritual.”[18] Corretamente, ele diz que “um bom programa de educação física deve ser considerado tão importante quanto os programas acadêmicos e religioso”.[19]

Ellen White concorda com essa segunda visão de Bacchiocchi, ao defender o “desenvolvimento harmônico de todas as faculdades”[20], e ao descrever a educação como “desenvolvimento harmônico das faculdades físicas, intelectuais e espirituais”[21]. Isso claramente contradiz a ordem das prioridades cristãs de Bacchiocchi em sua obra sobre música: “espiritual em primeiro lugar, o mental em segundo e o físico em terceiro”. Na vida do cristão tudo está relacionado ao que chamamos de “espiritual”.[22]

O físico não é mau
Referindo-se ao corpo, Garlock diz que “o ritmo… alimenta a satisfação própria, a parte egoísta do homem”[23]. Além de ser uma afirmação solta, sem fundamentação, ela traz uma idéia dualista, mais influenciada pelo gnosticismo (o mal reside no físico) que pelo cristianismo bíblico.

E ao afirmar que o ritmo é o que causa respostas físicas, Garlock diz uma verdade parcial: outros aspectos da música também provocam reações físicas.

Além disso, a Bíblia não sugere que reações corporais sejam inerentemente erradas na adoração. De fato, a Bíblia relata positivamente as posturas, gestos e movimentos corporais da adoração hebraica (prostrar-se com o rosto em terra, ajoelhar-se, levantar as mãos, danças, etc). Obviamente há aqui questões culturais envolvidas.

Ao abordar ritmos que ele mesmo aprova, Garlock diz “não há nada errado com a música que tem um efeito físico...”, ao falar dos efeitos da marcha. Isso é um exemplo dessa argumentação inconsistente, incoerente, que afirma uma coisa aqui e então afirma o contrário algumas páginas depois.

Contrariando o seu mentor, Bacchiocchi afirma em “Imortalidade e ressurreição” que o “corpo físico não é mau”[24] e que “o Antigo Testamento não distingue entre os órgãos físicos e espirituais.”[25] Um mesmo autor, duas obras, dois pensamentos conflitantes.

O dualismo de Daniel Spencer
Esse argumento dualístico encontrou eco na igreja adventista em vários artigos e palestras. Ele está presente também na palestra sobre música da série “A Guerra dos sentidos”, de Daniel Spencer.

Spencer admite que usou Garlock como uma das fontes para as suas palestras (clique na imagem ao lado) e vai um passo além do raciocínio de Bacchiocchi e diz:

“Eu estou lhe apresentado aqui um critério: Nós somos espírito, mente e corpo; a música é melodia, harmonia e ritmo. A melodia é o que estimula nossa parte espiritual, ela deve dominar...”

“O ritmo deve ser suprimido, pq ‘Deus é espírito, e importa que os que O adoram, O adorem em espírito e verdade’; ou seja, tudo no lóbulo frontal, e não na carne, que combate contra o espírito”. Para ouvir, clique abaixo:


Essa é basicamente uma antiga heresia gnóstica dualista. Note que Spencer diz que somos espírito, mente e corpo, que Deus é espírito e é com essa ferramenta que devemos adorá-lO, e não na carne (corpo) - a qual “combate contra o espírito.”

Para os gnósticos e muitos filósofos gregos pagãos dualistas, o espírito é bom e vive aprisionado pelo corpo, que é mau. “No dualismo platônico, a matéria é a fonte e origem do mal”[26], diz o próprio Bacchiocchi. E completa: “A identificação do mal com a matéria tem levado a uma visão pessimista do corpo e da existência física. É lamentável que esse ponto de vista pessimista do corpo tenha influenciado tão fortemente o pensamento e prática cristãos”[27].

Ao fazer coro a Garlock e Bacchiocchi, e relacionar a carne pecaminosa ao corpo, Spencer está dizendo que o corpo deve ser suprimido, pois milita contra o mundo espiritual. Isso soa como cristianismo monástico, medieval.

Porém, na Bíblia, essa carne que milita contra o espírito não é o mesmo que corpo literal, matéria. A “natureza carnal” não é constituída de células em si, mas de tendências pecaminosas. A solução para o pecado não é uma vacina. O mundo físico não é mau, como diziam os gnósticos, pois Deus também o criou, criou tanto nosso espírito quanto nosso corpo e a ambos chamou de bons.

Em versos como esse, a Bíblia apresenta a “carne” como sinônimo de “natureza carnal”, pecaminosa, e não como sinônimo de corpo literal, parte física, como colocou Spencer.

Logo, essa tricotomia humana e divina mostra-se sem aplicação ao que ele quer expor. Ele pretende usar o critério escriturístico, mas o faz distorcendo as Escrituras para que se adequem aos seus critérios.

Utilizando o conceito tricotômico racionalmente
Garlock e Bacchiocchi ensinam que “a característica que define a boa música é um equilíbrio entre seus três elementos básicos: melodia, harmonia e ritmo.” Ou seja, se alguém fizer o solo de um hino a cappella, isso não resultará em “boa música” por faltar a harmonia. Aqui está o problema: a Bíblia diz que os levitas cantavam em “uníssono” (2 Cr 5:13)[28]. Resultado: na avaliação de Bacchiocchi, a música dos levitas não era “boa música” por ser desequilibrada. Um absurdo com o qual nem ele concordaria.

E há erros lógicos nesse conceito. Após dizer que a boa música é a que traz um equilíbrio entre melodia, harmonia e ritmo, Bacchiocchi parte para a acusação: “A música rock inverte esta ordem, fazendo do ritmo o elemento dominante, depois a harmonia e por último a melodia.” O erro está em: se são “equilibrados”, esses elementos estão em pé de igualdade e não existe “ordem” que possa ser invertida.

Ao descrever a dança de Davi no segundo transporte da Arca da Aliança, Ellen White diz que ele acompanhava "em sua alegria o ritmo do cântico" (Patriarcas e Profetas, p. 706). Assim, pelo critério triconômico, essa música rítmica provavelmente era desquilibrada, ruim, carnal. No entanto, Bacchiocchi ensina que isso aconteceu depois de uma suposta reforma musical divinamente inspirada que teria banido os tambores, a dança e modificado a música sacra! É contraditório.

A posição adventista

O ‘Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia’, no capítulo “A doutrina do homem”, após descrever o dualismo, alerta que “alguns dividem a natureza humana em três: corpo, alma e espírito. Para os nossos objetivos, ambas as posturas podem ser abrangidas pelo dualismo.”[29]

E logo após, o ‘Tratado de Teologia’ expõe a visão biblicamente correta: o monismo bíblico, o ser humano como uma unidade, onde “todas as expressões da vida interior dependem de toda a natureza humana”[30].

Dividir a natureza humana em “corpo, alma e espírito” e apresentar o corpo como a parte de “menos importância”, como faz Garlock, e parte a ser “suprimida” como faz Spencer é algo próximo demais do dualismo. Ninguém pode apresentar essas teorias ao nosso povo como se isso fosse “adventismo”, pois não é.

Conclusão
Garlock tem uma visão dualística/tricotômica do ser humano (espírito, alma/mente e corpo). Os adventistas não crêem nisso. Arbitrariamente, Garlock relaciona essa visão com 3 elementos da música (melodia, harmonia e ritmo) e ensina que devemos supervalorizar a melodia e desvalorizar o ritmo. Não há nada na Bíblia que apóie essa idéia.

Mas Bacchiocchi e outros (como Daniel Spencer) lançam mão da idéia de Garlock e a utilizam sem grandes alterações. E alguns adventistas não vêem problema algum e acham linda a teoria dualística/tricotômica de Garlock.

Faça a sua conclusão leitor.

Infelizmente, a discussão sobre música e adoração na igreja adventista ainda acontece na periferia intelectual e teológica. É uma discussão marginal na “terra-de-ninguém”, onde vale tudo: argumentação ilógica, teorias infundadas, heresias misturadas com verdades, citações de lunáticos e místicos em geral, etc. Me parece que só não vale uma coisa: usar as boas e conhecidas regras raciocínio e interpretação bíblica.


por Vanessa Meira e Vanedja Cândido Barbosa


________________________________________
[1] Frank Garlock e Kurt Woetzel, Music in the Balance, p. 57.
[2] Existem vários autores que fazem essa relação sem fundamento. Procurando a fonte de tal informação encontrei o educador musical Edgar Willems, que é citado por alguns desses autores. No entanto, há uma diferença no conceito de Willems: a melodia afetaria o aspecto emocional, não o espiritual. O conceito de Willems é:
Ritmo - vida fisiológica (viver)
Melodia - vida afetiva (sentir)
Harmonia - vida mental (pensar)
[3] Samuele Bacchiocchi, O cristão e a música rock, 150.
[4] Você pode assistir uma palestra com esses conceitos de Garlock on-line aqui: http://www.youtube.com/watch?v=hSGx95YsZEk .
[5] Samuele Bacchiocchi, Imortalidade ou ressurreição, p.10.
[6] Samuele Bacchiocchi, O cristão e a música rock, 129.
[7] Notas do seminário “Symphony of Life”, de Frank Garlock, disponível em http://bayareabaptistchurch.org/index.php?option=com_content&view=article&id=61&Itemid=118 e http://webspace.webring.com/people/ed/davidpwil/SOL3.html
[8] O cristão e a música rock, p. 151 e 152.
[9] Idem, p. 150.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] Idem, p. 151.
[13] Imortalidade ou ressurreição, p. 1, 21.
[14] Idem, p. 10.
[15] Ibid.
[16] Idem, p. 18.
[17] Idem, p. 18 e 19.
[18] Idem, p. 21.
[19] Idem, p. 22.
[20] Ellen White, Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes, p. 296.
[21] Ellen White, Educação, p. 13.
[22] A questão é mais profunda e não abordaremos tudo aqui. Mas bastaria, por exemplo, citar Ellen White dizendo que “com a mente servimos ao Senhor” (Temperança, p. 14) para refutar de forma diferente essa escala de prioridades de Garlock. Para uma interessante visão adventista da “espiritualidade”: http://espiritualidade.numci.org/a-nova-espiritualidade-e-espiritualidade-adventista/
[23] Music in the Balance, p. 33.
[24] O cristão e a música rock, p. 49.
[25] Idem, p. 28.
[26] Idem, p. 49.
[27] Idem, p. 49.
[28] http://www.musicaeadoracao.com.br/livros/tensao/2_cap2.htm
[29] Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, p. 239.
[30] Ibid.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

As fontes duvidosas de Bacchiocchi

O que torna uma pesquisa digna de ser citada? Certamente, a credibilidade de suas fontes deve ser um dos critérios. Uma pesquisa rápida sobre as fontes de "O cristão e a música rock" revela que como editor de livros, Bacchiocchi era um ótimo teólogo. Pode parecer perseguição de minha parte. Mas não aguento mais ler e ouvir as mesmas lorotas ditas com ar de respeitabilidade. Conheçam algumas das fontes de Bacchiocchi:

John Diamond
John Diamond é um semi-místico que inventou a “Cinesiologia Comportamental”. Ele defende o uso da acupuntura, terapia com cores, com árvores e com música. Ele acredita que o ser humano tem uma Energia Vital, que pode ser estimulada por tais terapias e que levaria à cura. Você pode ver as terapias místicas de John Diamond em seu site:
http://www.drjohndiamond.com/the-diamond-path-of-life
http://www.drjohndiamond.com/the-works-of-john-diamond-md

Bacchiocchi cita a “Cinesiologia Comportamental” entre os “vários estudos científicos (que) estabeleceram os efeitos negativos da música rock sobre a mente”. (p.140)

O dr. Helio Luiz Grellmann, adventista, em “Cristianismo e terapias alternativas – fisiologia e misticismo” também cita a "Cinesiologia Comportamental" de John Diamond como uma dessas terapias alternativas que os adventistas devem evitar por causa do seu caráter místico (p. 164).
Esse material do dr. Grellmann está disponível em: http://images.melker.multiply.multiplycontent.com/attachment/0/RsBktQoKCnQAAAvXuC81/Cristianismo%20e%20Terapias%20Alternativas.pdf?key=melker:journal:25&nmid=53585980
e
http://www.4shared.com/office/xIQWoK-7/Cristianismo_e_Terapias_Altern.html

A terapia de Diamond e suas ligações com o misticismo oriental também são expostas em “John Ankerberg, Dr. John Weldon, The Encyclopedia of New Age Beliefs ( Harvest House, 1997), p. 399-407.

Bacchiocchi cita euforicamente o livro de Diamond “Your Body Doesn’t Lie”. O título original desse livro era BK: Behavioral Kinesiology. Chega a ser constrangedor imaginar o dr. Bacchiocchi e seus seguidores levando a sério e recomendando uma pseudociência baseada em ocultismo.

Interessantemente, Rebecca Brown, uma ex-satanista que faz sucesso entre os crentes, denuncia a "Cinesiologia Comportamental" como uma prática ocultista, uma das artimanhas satânicas para esse tempo (Vaso para Honra, p. 150). Brown não é uma fonte confiável para mentes sãs. Mas quem acredita em Bob Larson não tem motivos para duvidar de Rebecca Brown...

E o mais curioso vem agora: apesar de combater o rock, Diamond inventou uma terapia com tambores! Isso está em seu livro também “científico” “The Way of the pulse – drumming with Spirit”. O mesmo autor que combateu o rock defende os tambores. Por essa Bacchiocchi não esperava...

Além de Diamond, Bacchiocchi cita outro adepto do ramo místico da cinesiologia aplicada: as pesquisas de Sheldon Deal, “um quiroprático e escritor e que não é, de forma alguma, um velho retrógrado que tenta desmoralizar todo o Rock and Roll em si” (p. 136). As ligações de Sheldon com práticas e filosofias orientais também podem ser facilmente verificadas.

Cinesiologia Aplicada é considerada pseudo-ciência por alguns críticos por causa de suas associações com filosofias e práticas místicas. Você pode ler uma crítica científica á cinesiologia aplicada clicando aqui.

Após ler “O cristão e a música rock”, um leitor desavisado poderia se envolver tranquilamente com essas terapias místicas por causa da seriedade com que Bacchiocchi as recomenda. Para combater a música contemporânea vale tudo: citar um mentiroso caçador de demônios, fundamentalistas histéricos, pseudo-cientistas e místicos. O livro de Bacchiocchi é um amontoado de opiniões concordantes, sem nenhum filtro crítico.

Daniel Skubik
Bacchiocchi cita uma pesquisa com essas palavras: “Os neurocientistas Daniel e Bernadette Skubik fornecem uma explicação resumida de como a batida do rock afeta os músculos, a mente e os níveis hormonais.” (p. 135)

“Em um estudo importante sobre a Neurofisiologia do Rock, os pesquisadores Daniel e Bernadette Skubik enfatizam com impressionante clareza (para cientistas!) o impacto musical da batida do rock.” (p. 133)

Acontece que Daniel Skubik não é neurocientista. Ele tem formação na área de ciências políticas, filosofia e leis. Portanto escreveu sobre algo que está fora de sua área. E esse “estudo importante” nem aparece no seu curriculum, disponível no link: http://www.calbaptist.edu/dskubik/IBpaper.pdf , que também pode ser visto online no site da universidade batista onde ele leciona.

Que profissional não publicaria um "estudo importante" em seu currículum? Infelizmente, essa informação se alastrou pela internet, e até mesmo o erudito Wolfgang Stefani embarcou nessa. Teremos que engolir esse "estudo importante" feito por "neurocientistas" por muito tempo...

David Noebel
Bacchiocchi apresenta Noebel como “um pesquisador médico” (p. 248). As informações biográficas sobre Noebel o apresentam como tendo um Bacharelado em Artes (Hope College em Holland, Michigan) e um Mestrado em Artes (University of Tulsa), na área de Humanas e não em Ciências Médicas. Além disso, ele é descrito como candidato a Ph.D. em filosofia na University of Wisconsin.

Noebel foi um dos primeiros a denunciar o rock como uma arma comunista, argumento que se tronou popular na década de 70, encontrando espaço até mesmo na Revista Adventista (outubro de 79).

Ele acusava os soviéticos de usarem "uma elaborada técnica científica destinada a tornar uma geração de jovens americanos neuróticos através da obstrução nervosa, deterioração e retardamento mental". Olhando o comportamento da atual geração, talvez eu concorde com Noebel na parte do “retardamento”, mas a sua teoria da conspiração é exagerada. Para uma crítica à cruzada anti-rock de Noebel: http://www.wfmu.org/LCD/18/antirock.html.

Outras citações curiosas de Bacchiocchi
Jacob Aranza – Um dos principais divulgadores da paranóia das mensagens subliminares ao contrário (backward masking). Autor de "Backward Masking Unmasked" (1982) and "More Backward Masking Unmasked" (1985).

Ele denuncia o rock como parte de um plano Satânico. Sua fonte: um amigo seu, evangelista anônimo, que se sentou ao lado de um gerente de uma grande gravadora de rock igualmente sem nome em um avião. No decorrer de uma conversa casual, o gerente lhe contou todo esse plano satânico.

O curioso é que Aranza aprova o rock cristão. Para ele, o rock cristão poderia ser útil para salvar a juventude da religião satânica do rock’n roll.

Jeff Godwin – Um fundamentalista, ultra-conservador. Ele faz acusações infundadas e chega a conclusões contundentes a partir de frágeis evidências. Vê o demônio em tudo e em todos. Nem mesmo seus companheiros de luta anti-rock, como Bob Larson, escaparam da acusação de serem satanistas disfarçados. Ele é o lunático do movimento anti-rock.

Deus teria revelado para ele que algumas bandas populares são compostas por demônios encarnados. Ele é ardente defensor da teoria do “ritmo vudu” que supostamente deu origem ao rock. Segundo ele, o ritmo do rock tem o mesmo tempo da batida do coração humano (como se “rock” fosse um único ritmo, com um único andamento...). Para ele, isso hipnotisa e faz lavagem cerebral nos ouvintes para aceitarem a mensagem de Satã.

Naturalmente, Godwin também acredita em mensagens subliminares ao contrário (backward masking). Ele explica detalhadamente como as estrelas do rock invocam os demônios em sessões de gravação para garantir sucesso na venda de discos.

Conclusão
Eu não fiz uma pesquisa exaustiva. Muitas outras celebridades do submundo místico-pseudo-intelectual da música sacra podem estar no livro de Bacchiocchi. Minhas fontes aqui também podem ser questionadas, mas eu não sou uma profissional tentando influenciar a comunidade adventista. Não estou escrevendo um livro-pesquisa e nem tenho a influência que tinha o dr. Bacchiocchi.

A minha dúvida é: como eu, que não sou profissional da música sacra, nem da editoração de livros, nem da teologia, fui capaz de perceber tanta besteira num único livro e muitos profissionais não foram? Como pode “O cristão e a música rock” ter ocupado páginas de nossas publicações e até nossos púlpitos em forma de palestras e sermões?

Por que acreditamos em Bob Larson?

Bob Larson é uma autoridade em música sacra. Pelo menos alguns adventistas acham que é. Seu nome aparece em centenas de artigos sobre música sacra. Na Revista Adventista, ele foi presença constante na década de 70. Veja como a famosa e respeitada obra de Samuele Bacchiocchi "O cristão e a música rock" descreve Bob Larson:

“O ex-astro de rock Bob Larson explica” (p. 101 e 119)
“Bob Larson, cuja carreira como um músico popular de rock lhe deu uma experiência de primeira mão do cenário do rock” (p. 131)
“Bob Larson, que antes da sua conversão era um músico de rock de sucesso em shows de televisão e que tocou para platéias repletas no Convention Hall, na cidade de Atlanta” (p. 133)

Em seu livro “Hell on Earth” , publicado em 1974 ele afirma que alcançou o sucesso já aos treze anos:

Aí diz que Bob Larson alcançou a fama com a idade de "treze anos quando sua primeira canção de sucesso foi publicada. Tinha a sua própria banda de rock’n roll aos quinze anos, e se apresentou no rádio e na televisão nos próximos anos até que sua carreira o levou ao Convention Hall em Atlantic City.” (Bob Larson, Hell on Earth (Carol Stream, IL: Creation House, 1974), biografia do autor no prefácio.)

O fato é: Bob Larson NUNCA foi um astro do rock.

Sharla Turman Logan, a tecladista de “The Rebels” (a ex-banda de Bob Larson) afirmou em entrevista que conheceu Bob aos treze, mas "nunca ouviu nenhuma música de sucesso”. Era uma desconhecida banda de adolescentes, não uma banda de heavy metal. (Jon Trott, "Bob Larson's Ministry Comes Under Scrutiny," Cornerstone, Vol. 21, Fevereiro de 1993, p. 18)

E sobre o fato deles terem tocado no Convention Hall em Atlantic City, a história não é como Larson conta. Eles tocaram apenas uma paródia de “Charlie Brown” numa convenção do Lions' Club. O pai do baterista era um administrador da organização e ele marcou a apresentação (Jay Grelen and Doug LeBlanc, "This is Me, This is Real," World, Vol. 7, No. 32, 23 Jan. 1993, p. 11.)

Sharla conta que eles tocavam apenas em eventos pequenos, em feiras e igrejas, acompanhados pelos pais, e que as alegadas experiências demoníacas durante os shows nunca aconteceram e nem era possível que acontecesse, dada a natureza dos shows e o estilo da banda.

No entanto, apesar de ser um completo desconhecido no cenário musical, Bob Larson refere-se a si mesmo como um grande compositor, elogiado por grandes executivos da música:

Além disso, sem modéstia alguma, ele se descreve como um dos melhores "guitarristas de gravação" (enviem-me essas gravações se você puder encontrá-las):

Ex-astro”, “músico de rock de sucesso”, “carreira”. Como Bacchiocchi caiu nessa? Eu procurei em todos os arquivos disponíveis, nas listas da Bilboard, e nunca encontrei nenhum “sucesso” de Bob Larson como compositor, ou de sua banda “The Rebels” (não confundir com uma banda de mesmo nome que, de fato, fez algum sucesso). Se alguém encontrar algo, por favor me envie.

Você pode ler mais sobre as mentiras e exageros de Larson em toda a internet, mas comece por aqui: Matéria da World Magazine e da Cornestone.

Bacchiocchi também diz que Bob Larson “estudou medicina antes de se tornar um músico popular de rock”(p. 140). Vamos aos fatos:

O próprio Larson diz que aos treze ele já era um sucesso. Como pode ter estudado medicina antes dos treze? As contas não fecham.

Em 5 de Janeiro de 1993 Larson disse publicamente que quando ele entrou no ministério, ele estava “a apenas alguns créditos” de receber a licenciatura em química,e em seguida ir para a escola de medicina (Bob Larson, "Talk-Back With Bob Larson", arquivo de programa de rádio, 5 de janeiro de 1993).

No entanto, Bob nasceu em 1944, se formou no ensino médio em 1962, frequentou o McCook Junior College durante um ano, transferiu-se para a Universidade de Nebraska, e a abandonou em setembro de 1964. (Jay Grelen and Doug LeBlanc, "This is Me, This is Real," World, Vol. 7, No. 32, 23 de Janeiro de 1993, p. 11)

Ou seja, ele teve apenas dois anos para estudar o que disse que estudou.


Bob Larson é, provavelmente, a fonte mais esquisita (e mentirosa) de Bacchiocchi. É incrível como a comunidade adventista dá crédito a um charlatão insano como Larson. É improvável que o dr. Bacchiocchi desconhecesse as controvérsias e escândalos em torno de Bob Larson. Mesmo assim, ele preferiu levar em conta os argumentos e as "pesquisas" de um maluco caçador de demônios.

A ironia é que Bob Larson mudou de opinião sobre o uso do rock na adoração e no evangelismo, mas Bacchiocchi e aqueles que o citam nunca mencionam tal mudança. Recentemente, Larson abriu uma escola de exorcismo, que tem atraído até adolescentes.
Ele também disponibiliza um teste online para saber se você está com o demônio no corpo. Chama-se DemonTest, e pode ser acessado aqui: http://www.demontest.com/ .

Qual é a credibilidade de uma pesquisa que cita Bob Larson como fonte séria? Até quando vamos ter o desprazer de ver o nome de Larson notas de rodapé de pesquisas e artigos que pretendem orientar o povo de Deus?

Para fechar com chave de ouro, aí está o acadêmico Bob Larson em ação:



terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Salmo 150 e a linguagem figurada



Para fugir das claríssimas afirmações do Salmo 150 quanto ao uso de instrumentos musicais na adoração, tornou-se popular o argumento de que esse salmo é altamente figurativo, e não deve ser levado em conta literalmente.

Como explica Bacchiocchi:
“Por exemplo, não há nenhuma maneira no qual o povo de Deus, na terra, possa louvar o Senhor “no firmamento, obra do seu poder”. O propósito do salmo não é especificar o local e os instrumentos a serem usados para o louvor durante o culto divino, mas sim convidar a tudo o que respira ou emite som a louvar o Senhor em qualquer lugar. O salmista está descrevendo com linguagem altamente figurativa a atitude de louvor que deveria caracterizar o crente a toda hora e em todos os lugares. Interpretar este salmo como uma licença para dançar, ou tocar tambores na igreja, é interpretar de forma errada sua intenção.” (O cristão e a música rock, p. 33)

Os salmos não contém apenas figuras de linguagem.
Apesar de serem altamente figurativos, os salmos apresentam muitas expressões literais, descrições de acontecimentos históricos, referências literais a lugares, pessoas e objetos. Ao contrário do que sugere o argumento de Bacchiocchi, não há nos Salmos um “8 ou 80” com relação às figuras de linguagem. A poesia é uma mistura de expressões figurativas e literais e não um acumulado de sentenças exclusivamente figurativas.

Figura de linguagem é simplesmente uma palavra ou frase usada fora de seu emprego ou sentido original. A figura de linguagem normalmente aparece numa sentença que não faz sentido quando tomada literalmente. Mesmo um leitor com pouco ou nenhum treinamento em literatura poderia dizer quais são os elementos figurativos e os elementos literais numa poesia.

A frase “Essa menina é uma boneca!” é figurativa. Mas a menina é literal, ela existe. O Salmo 1 usa linguagem figurada quando diz que os ímpios “são como a moinha que o vento espalha”(v.4), mas é literal quando adverte que “os ímpios não subsistirão no juízo” (v.5).

Isso demonstra como figuras de linguagem não são o mundo do “faz-de-conta” que Bacchiocchi descreve. Nos Salmos nem tudo é figurativo, existem elementos literais entre as várias figuras de linguagem e tipos de paralelismo.

Por isso, dizer que “a linguagem figurativa desse salmo não permite uma interpretação literal” é um erro grotesco. E esse erro assume proporções gigantescas quando vem de um teólogo tão experiente como era o dr. Samuele Bacchiocchi.

“Adufe” estaria simbolizando o que?
Há um princípio básico de hermenêutica segundo o qual as palavras devem ser entendidas em seu sentido literal, a não ser que tal interpretação leve a uma contradição ou a um absurdo.(Louis Berkhof, Princípios de interpretação bíblica, p. 87-96)

O significado original do texto é distorcido “quando se interpreta figurativamente uma declaração literal e quando se interpreta literalmente uma declaração figurativa.” (Henry A. Virkler, Hermenêutica Avançada, p. 19.)

Assim, aplicando esse princípio básico no Salmo 150, fica claro que a expressão: “Louvai-o com adufes” não precisa ser entendida como uma figura de linguagem. Ela faz sentido literalmente, pois os hebreus usavam adufes na adoração. Essa é a leitura mais natural do texto.

Aqueles que entendem os “adufes” do Salmo 150 como uma figura de linguagem devem dizer que figura de linguagem é essa. Símile? Metáfora? Alegoria? Além disso, os adeptos da interpretação figurativa dos adufes devem explicar em linguagem literal o que o texto supostamente estaria sugerindo de maneira figurada. O que significa “louvai com adufes”?

Incrivelmente, a resposta para esses “hermeneutas” geralmente é: “Louvai com adufes significa: NÃO usem percussão!”

Que figura de linguagem é essa onde o sentido literal é o oposto do sentido figurado? Ironia? Estariam esses intérpretes sugerindo que o Salmo 150 é um salmo irônico, sarcástico?

Figura de linguagem inadequada?
Ainda que “louvai-o com adufes” fosse figurativo, na ótica de Bacchiocchi essa seria uma figura de linguagem inadequada, pois para ele os adufes não podem ser usados na adoração. Isso nos leva a um fato curioso: o Espírito Santo inspirou o salmista e o levou a usar um elemento pecaminoso como figura de linguagem!

É como se o salmista tivesse escrito ao Senhor que “o teu amor é melhor que um pernil suíno!”, ou “minha alma suspira por ti mais do que o viciado anseia pela cocaína”. Um absurdo, ainda que fosse meramente simbólico.

Como o próprio Bacchiocchi destaca, os salmos usam expressões claramente figurativas, ordenando o louvor “no leito”, “portando espadas”, ou “no firmamento”, mas nenhuma dessas expressões é pecaminosa ou errada, como supostamente seria o “louvai-o com adufes” caso Bacchiocchi estivesse certo. Essa teoria pode ser resumida assim: no Salmo 150 Deus usa figuras de linguagem que fazem apologia ao pecado e que significam exatamente o contrário do que Ele queria dizer.

Devemos “tomar cuidado para não colocar demais exegese nos Salmos, a ponto de achar significados especiais em toda palavra ou frase, onde o poeta talvez não tenha objetivado nenhum.” (Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica, p. 177)

Bacchiocchi e sua hermenêutica por conveniência
Para vermos a incoerência metodológica de Bacchiocchi, basta compararmos a pesquisa que ele fez sobre a música com as pesquisas que ele fez sobre outros assuntos. Os métodos e abordagens são diferentes.
Apesar de defender essa leitura figurativa dos Salmos 149 e 150 em “O cristão e a música rock”, em seu livro “Imortalidade ou ressurreição?” (Unaspress, 2007), Bacchiocchi consegue separar claramente o que é figurativo e o que é literal nos salmos (e ele cita muitos salmos).

Por exemplo, quando o Salmo 6:5 diz que na morte não há lembrança do Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. Quando o Salmo 115:17 diz que os mortos não louvam ao Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. O fato dos salmos terem sido escritos em linguagem poética não impede interpretações literais de trechos que são claramente literais.

Ao pesquisar sobre a morte, Bacchiocchi consegue distinguir o que é figurativo e o que é literal nos salmos. Aparentemente, ele só não consegue fazer isso quando a discussão é sobre música: nesse caso, tudo é figurativo!

Outro exemplo da “hermenêutica por conveniência” de Bacchiocchi está no fato de ele desrespeitar uma regra básica que ele mesmo destaca em “Imortalidade ou ressurreição?”:

“Para encontrar respostas a essas indagações, tomaremos as Escrituras a fim de examinar todas as passagens pertinentes. (...) Deve-se sempre permitir às Escrituras interpretarem as Escrituras. Passagens que apresentam certos problemas devem ser interpretadas à luz daquelas que são claras. Seguindo tal princípio, conhecido como analogia da fé, podemos resolver as aparentes contradições que encontramos na Bíblia.” (p. 114)

Bacchiocchi ignorou a regra “texto claro interpreta texto obscuro” - Ele dá preferência a uma lista de instrumentos para inferir, imaginar, uma suposta proibição divina à flauta e aos tambores. Ele usa essa inferência para reinterpretar textos claros como os salmos 149 e 150. É uma incrível desobediência à regra hermenêutica.

Bacchiocchi desrespeita a regra “a Bíblia interpreta a Bíblia” – Ao afirmar que as flautas e os tambores ficaram de fora do templo por estarem "associados ao culto pagão”, ele não encontra nenhum apoio bíblico. A Bíblia não afirma isso em lugar algum, e os salmos continuam incentivando claramente o uso de flautas e tambores.

Bacchiocchi não leva em consideração “todas as passagens pertinentes” - A Bíblia tem outras passagens sobre o “estar associado ao paganismo” que foram sumariamente ignoradas em sua pesquisa, como:
- Pagãos usavam, dentre outros instrumentos, harpas e alaúdes (Is 14:11; Ez 26:13; Dn 3:5; Jó 21:12;)
- Incrédulos e bêbados infiéis usavam harpas, dentre outros instrumentos (Is 5:12)
- Prostitutas usavam harpas (Is 23:16)
- Um descendente de Caim é chamado de “pai dos que tocam harpa e flauta” (Gn 4:21).
- A maldição divina sobre a Babilônia mística do Apocalipse inclui menções à harpa, à flauta e aos clarins (Ap 18:22)
Esses instrumentos estão associados ao paganismo mas fazem parte da lista de “instrumentos do Senhor”. Isso torna insustentável a argumentação de Bacchiocchi.

E a dança?
Sempre que se discute o uso de instrumentos musicais no Salmo 150 surge a pergunta: “E a dança? Você está defendendo o uso da dança também?” Não. Eu estou defendendo o uso correto da Palavra de Deus.

Eu nunca entendi a preocupação com a dança. Não temos medo do véu (uma ordem bíblica para as mulheres), mas temos medo da dança. Não temos problema nenhum com as leis bíblicas sobre barba e cabelo, mas trememos diante da dança.

Alguns temem tanto que sugerem que a palavra “dança” não é dança, é “órgão”, ou outro instrumento musical desconhecido. Pode até ser, mas o peso da evidência está a favor da palavra “dança”: é uma tradução linguisticamente correta, e os hebreus dançavam em celebrações religiosas.

Se os adventistas não acham adequadas as manifestações físicas, podem argumentar de maneira diferente, usando a lógica, respeitando as regras de interpretação e sem alterar o texto bíblico. Fazemos isso facilmente com outros assuntos, podemos continuar fazendo no assunto da dança. Só não podemos seguir o “método Bacchiocchi” de fazer exegese com dois pesos e duas medidas.

Conclusão
Vimos quão frágil é o argumento da “linguagem figurada”. Eu não sei o que levou um teólogo tão celebrado a publicar uma obra com argumentos tão fracos como esse. Não sei o que concluir nesse ponto...