sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Sob o domínio do medo

Quando as crianças não querem obedecer, é comum ouvir dos pais: “se você não fizer, o velho do saco vai te pegar”. Quando não querem dormir: “A Cuca vai te pegar”.

Essa tática pode funcionar por um tempo. Mas, conforme o indivíduo vai se desenvolvendo, ninguém espera que esse tipo de “incentivo” baseado no medo continue sendo usado.

No entanto, esse fenômeno acontece o tempo todo nas igrejas: o domínio pelo medo. O raciocínio é o seguinte: “se o povo não quer tomar jeito por amor a Jesus, terá que ser por medo do diabo!”

Assim, grosso modo, o método é aplicado a tudo. “Você não quer deixar o refrigerante por princípios de saúde? Ok. Então vire o rótulo da Coca-Cola e leia ‘Alô Diabo’. Esse refrigerante é do demônio irmão!” Aí o crente deixa o refrigerante por medo do diabo, e não por um princípio baseado na Bíblia.

No assunto da música e adoração ocorre o mesmo. Quando o argumento não convence pela lógica, abusa-se de histórias de pactos diabólicos, mensagens subliminares, casos de possessão, etc. E depois é só fazer o apelo, desligar os instrumentos e jogar todos os cd’s na fogueira...

Mas o povo que prega a esperança não pode se sujeitar ao medo. E isso deve obrigatoriamente transparecer em nossa adoração. O clima repressivo, o tom ameaçador, o patrulhamento sem misericórdia deve ceder lugar ao incentivo, a orientação, o discipulado e até a repreensão com brandura.

A música dos "comedores de criancinhas”
A década de 70 foi marcante para a música adventista. O debate sobre a música foi afetado pelo contexto da Guerra Fria. A Revista Adventista foi inundada com artigos sobre música, com insistentes citações de Bob Larson e John Diamond, autores conhecidos por suas abordagens espiritualistas à música.[1]

Foi nessa década que surgiu a primeira versão da Filosofia Adventista de Música (1972), que foi substituído por outro documento em 2004. Quando comparamos as duas versões, fica nítido o caráter controlador da versão de 1972, que falava explicitamente de acordes, estilos e ritmos inadequados. Era praticamente uma lista de “pode x não pode”.

Demorou mais de 30 anos para a Filosofia Adventista de Música ter seu texto mudado. O atual texto é mais aberto, enfatizando princípios de adoração e não acordes e ritmos.[2]

Nesse contexto, em outubro de 79, a Revista Adventista publicou um curioso e amedrontador artigo “Uso comunista da música”, assinado por Melvin Munn. Veja como o pânico se disseminava:

“Os comunistas idealizaram esse plano especialmente para estudantes de escolas superiores, para produzir diferentes graus de neurose artificial e prepará-los para a agitação e precipitar a revolução — agitação e revolução para destruir nossa forma americana de governo e os princípios básicos cristãos que governam nosso modo de vida. (...)” p.7

“Atualmente esta música (rock’n roll) vai ainda mais profundo, dentro do coração da África, onde ela era usada para incitar guerreiros a um tal frenesi, que ao cair da noite os vizinhos eram comidos em panelas canibais. (...)” p.7

“Esta música (rock’n roll) é tão-somente parte do esquema diabólico dos comunistas para fazer os humanos retornarem à selvageria.”p. 7

Numa época em que era popular o argumento que "comunistas comiam criancinhas", nada mais natural que usar isso num artigo sobre música. Isso reflete bem o espírito do debate sobre música na igreja: especulações que apelam ao medo. [3].

Animais míticos
Essa abordagem assustadora também é usada na discussão sobre o uso da percussão na adoração. Esqueça a complicada discussão sobre acústica, volumes e ritmos: basta fazer uma assustadora conexão entre instrumentos de percussão e o sobrenatural que a discussão se resolve!

“O tambor é capaz de estabelecer contatos com os espíritos dos deuses, com as almas dos ancestrais, com os mortos e com os animais míticos.”[4]

Animais míticos? Desde quando os adventistas acreditam em animais míticos? Desde quando os adventistas tem medo de fantasma? Qual será o próximo passo? Adventistas pedindo pastores para “benzerem” suas casas para espantar o “mau-olhado”?

Poderíamos acrescentar itens ao “argumento mítico”: as religiões afro-brasileiras usam flores, água, sal, toalhas e roupas brancas em seus rituais. Isso quer dizer que não podemos usar tais coisas? Podemos decorar nossas igrejas com flores ou isso pode invocar os espíritos da umbanda? Podemos continuar usando toalhas brancas na santa ceia? E roupas brancas nos batismo? O crente pode comer pipoca mesmo sabendo que ela é usada em sessões de descarrego?

Perceba que o argumento mítico amedrontador pode ir longe...

Por que falar tanto do diabo?
Outra coisa que me impressiona no debate musical é o conhecimento que alguns tem da agenda satânica. É curioso como alguns escritores e palestrantes conseguem saber os planos secretos e gostos de Satanás. Como conseguem descobrir? São informações que, para mim, podem dar a impressão de uma certa intimidade com o inimigo.

Que o inimigo está ativo, ninguém duvida. O que eu duvido é que ele esteja envolvido em tudo o que afirmam sobre ele. Já o envolveram inclusive na produção do CD Jovem da igreja adventista: “Para esse fim, satanás já logrou êxito introduzindo a música gospel na igreja, até, nos CDs Jovem.” [5]

Eu tenho alguns CD’s Jovem, mas não consegui localizar em nenhum encarte o nome de Satanás como produtor executivo ou musical. Vi o nome de vários pastores e músicos adventistas. O autor do artigo está sugerindo que esses pastores e músicos foram usados por Satanás. E isso é muito sério.
Alguns pregadores e palestrantes se dedicam a estudar e ensinar o que Satanás está tramando. A desculpa deles é: “estamos numa guerra e precisamos conhecer as táticas do inimigo”. Daniel Spencer (foto ao lado) é um palestrante que adquiriu certa notoriedade no Brasil apresentando uma série de palestras denominada “A Guerra dos Sentidos”.

Quando tive contato com seu material, chamou-me a atenção o tempo dedicado por ele a falar de Satanás e seus planos secretos. Alguém lhe perguntou sobre isso após uma palestra (a partir de 14:30 min, no link: http://video.google.com/videoplay?docid=-6148262566346133974#

E a resposta (17:40 min) dele inclui:

“O objetivo da palestra não é mostrar um diabo vencedor, mas é mostrar um adversário que não pode ser ignorado. E Deus está sendo louvado quando eu faço isso, porque foi Deus quem criou o diabo. Ele criou um ser inteligente.

E o Espírito de Profecia nos diz assim: ‘muitas vezes, até mesmo do púlpito, falamos pouco sobre o diabo, e é necessário entender as táticas do adversário’. Não é necessário ficar estudando e enfiando a cabeça nos livros para entender como é o diabo e todos esses temas. O Espírito de Profecia e a Bíblia desaconselham isso. Mas temos que conhecer o que Deus nos mostra sobre como ele trabalha para não ignorar esse poder.”

Gostaria que alguém encontrasse e me enviasse o texto onde Ellen White afirma isso.
Eu sei que ela diz exatamente o contrário:

"É verdade que Satanás é um poderoso ser; mas, graças a Deus, temos um Todo-poderoso Salvador, que expulsou do Céu o maligno. Satanás se agrada quando magnificamos seu poder. Por que não falar de Jesus? Por que não engrandecer Seu poder e amor?"[6]

"Não é a obra do ministro evangélico dar voz às teorias de Satanás. ..."[7]

"No lugar em que o povo se reúne para adorar a Deus não seja pronunciada nenhuma palavra que desvie a mente do grande interesse central - Jesus Cristo, e Este crucificado. Com as questões colaterais, não nos devemos intrometer. O peso da obra é: Pregar a Palavra."[8]

"Deus pede um reavivamento e uma reforma. As palavras da Bíblia, e a Bíblia somente, deviam ser ouvidas do púlpito."[9]

"Dai ao povo a verdade presente. Falai a verdade. Enchei-lhes a mente com a verdade. Edificai as fortalezas da verdade. E não apresenteis as teorias de Satanás a espíritos que não devem ouvir falar a respeito delas.
O que o povo necessita não é uma apresentação das sedutoras artes de Satanás, mas uma apresentação da verdade como é em Jesus.
Lembrai-vos de que o diabo pode ser servido por uma repetição de suas mentiras. Quanto menos lidarmos com esses assuntos objetáveis, tanto mais puros, limpos e menos manchados estarão nosso espírito e nossos princípios. ... " [10]

"Ao falarmos na força de Satanás, o inimigo consolida mais seu poder sobre nós. Quando falamos no poder do Onipotente, o inimigo é repelido."[11]

Falamos pouco do diabo e seus planos no púlpito? Deveríamos falar mais dele? Deus é louvado quando falamos tanto tempo do diabo? Pregar o plano da Redenção não é suficiente, temos que pregar sobre o plano de Satanás?

Creio que há uma preocupante e crescente onda de interesse em experiências sobrenaturais no adventismo brasileiro.[12]

O problema é tão grave que a igreja mundial teve que tomar um voto incluindo no corpo de crenças fundamentais algo óbvio: Jesus é maior e mais poderoso que todos os demônios! Que tipo de adventista medroso não sabe que Jesus garante vitória sobre os demônios e libertação completa? [13]

No entanto, de nada adianta a igreja mundial enfatizar que “não mais vivemos na escuridão, com medo dos poderes do mal” se as igrejas emprestam os púlpitos para os pregadores do terror especulativo.

Escatologia Especulativa
E o pior é que esse misticismo invade a igreja à luz do dia, disfarçando-se de coisas boas, como “Seminário de Música”, “Seminário Profético” ou “Escatologia”. É impressionante ver como palestras que citam a maçonaria, os iluminati, o satanismo, numerologia, as mensagens subliminares e as supostas infiltrações jesuítas na IASD tem despertado o interesse. E os palestrantes ainda colocam Ellen White para “assinar em baixo” de suas teorias da conspiração.[14]

Desde quando essas coisas fazem parte da escatologia adventista? O que faz parte de nossa escatologia é saber que o espiritismo tem um importante papel a desempenhar. Mas isso não justifica essa onda especulativa que gera sermões e palestras e um desperdício do púlpito.
Infelizmente, alguns nomes de talento se enveredaram no caminho da especulação.

Para citar um exemplo, o dr. Walter Veith, admirado por sua contribuição à causa criacionista, desenvolveu uma série de palestras absurdamente especulativas e amedrontadoras sobre a Nova Ordem Mundial e as Sociedades Secretas e que também aborda o tema da música sacra. Isso acaba lançando sombra em sua credibilidade, o que é ruim para o criacionismo.[15]

Proponho urgentemente um retorno à Bíblia. Se vamos discutir música e adoração, façamos isso à luz da Palavra, e não à luz das teorias medonhas.

Chega de promover palestras sobre Sociedades Secretas, teorias da conspiração, Misticismo Oriental, Nova Era, pactos diabólicos, numerologia, simbologia do mal, satanismo e chamar isso de "escatologia".

Chega de ouvir sobre a Nova Ordem Mundial. Precisamos ouvir e atender à “Velha Ordem Divinal”: “Ide (...) e pregai o EVANGELHO” (Mc 16:15). Transformaram isso em “ide, pregais sobre os planos do diabo.”

A ironia é que essa onda terrorista tem invadido a igreja justamente através daqueles que clamam por uma “identidade adventista”, um retorno aos velhos e bons tempos. Esses temas conspiratórios são apenas um reflexo no adventismo de algo que está na moda no mundo evangélico. E eles tem oradores bem mais impactantes que nós (Daniel Mastral, Rebecca Brown, Josué Yrion, Tio Chico, dentre outros).

Reavivamento e reforma não acontecem com mensagens sobre satanismo e a feiúra do demônio. Segundo Ellen White, "Deus pede um reavivamento e uma reforma. As palavras da Bíblia, e a Bíblia somente, deviam ser ouvidas do púlpito."[16]
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[1] Bob Larson foi citado 33 vezes na Revista Adventista. Todas durante a década de 70 (com exceção de duas citações em artigo de 2005).
[2] O voto de 1972 é bem diferente do de 2004. O de 1972, por exemplo, traz a expressão “jazz, rock e correlatos”. O de 2004 não traz. A expressão estava no texto sugerido para o voto de 2004, mas saiu após análise após análise. Aqui está o de 1972: http://www.iamaonline.com/worshipmusic/Guidelines%20Toward%20An%20SDA%20Philosophy%20of%20Music.htm
Aqui está o texto sugestivo para 2004 (ainda com a referência ao "rock"): http://www.adventistreview.org/2003-1541/Music.pdf
Aqui está o atual, no formato final aprovado por voto: http://www.adventist.org/beliefs/guidelines/music_guidelines.html
[3] O adventismo sempre sofreu com esse tipo de “sensacionalismo terrorista”. Desde que abracei o adventismo, tenho ouvido falar de decretos dominicais que supostamente estavam assinados. O medo do decreto e da perseguição causado por histórias especulativas consegue mais reavivamento que a Palavra de Deus. Na verdade, há entre nós um grande número de “decretistas do sétimo dia”: gente que aguarda o decreto dominical com mais ansiedade que a própria volta de Jesus.
[4] Otimar Gonçalves, “As preocupantes implicações do uso dos tambores/bateria na adoração a Deus” http://www.ja.org.br/musica/artigos_tambores.html
[5] Artigo de Sikberto Marks, disponível em: http://www.musicaeadoracao.com.br/artigos/meio/musica_igreja_sikberto.htm
[6] Ciência do Bom Viver, 94.
[7] Mente, Caráter e Personalidade, Vol. 2, 718.
[8] Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos, 331-332
[9] Profetas e Reis, 626.
[10] Evangelismo, 624.
[11] Mensagens aos Jovens, 105.
[12] Por isso, e também pelas orientações de Ellen White já citadas, não vejo como positivo o interesse em relatos sobre o submundo do espiritismo e do satanismo, como o de Roger Morneau, Rebecca Brown e Daniel Mastral. Isso normalmente só gera pânico, superstição, demonização exagerada e generalizada, e leva a falsos “reavivamentos” baseados em emoções. Se uma geração inteira de adventistas morre de medo de entidades e espíritos malignos, não será lendo Roger Morneau e assistindo palestras especulativas de Walter Veith que vão superar isso. É lendo e praticando a Palavra que liberta poderosamente!
[13] Crescimento em Cristo - Nova crença fundamental aprovada em 4 de julho de 2005, na 58ª Assembléia da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia. Pela sua morte na cruz Jesus triunfou sobre as forças do mal. Ele subjugou os espíritos de demônios durante o Seu ministério terrestre e quebrou o seu poder e tornou certo o seu destino final. A vitória de Jesus dá-nos vitória sobre as forças do mal que continuam procurando controlar-nos, enquanto nós caminhamos com Ele em paz, alegria, e a garantia do Seu amor. Agora o Espírito Santo mora conosco e nos dá poder. Continuamente comprometidos com Jesus como nosso Salvador e Senhor, somos livres do fardo dos nossos feitos passados. Não mais vivemos na escuridão, com medo dos poderes do mal, ignorância, e a falta de sentido de nosso antigo estilo de vida. Nessa nova liberdade em Jesus, somos chamados a crescer na semelhança de Seu caráter, comungando com Ele diariamente em oração, alimentando-nos de Sua Palavra, meditando nisso e em Sua providência, cantando Seus louvores, reunindo-nos juntos em adoração, e participando na missão da Igreja. Na medida em que nos entregamos ao serviço de amor àqueles ao nosso redor e ao testemunho da Sua salvação, Sua constante presença conosco através do Espírito transforma cada momento e toda tarefa numa experiência espiritual. Razões bíblicas: Salmos 1:1, 2; 23:4; 77:11, 12; Colossenses 1:13, 14; 2:6, 14, 15; Lucas 10:17-20; Efésios 5:19, 20; 6:12-18; I Tessalonicenses 5:23; II Pedro 2:9; 3:18; II Corintios 3:17, 18; Filipenses. 3:7-14; I Tessalonicenses 5:16-18; Mateus 20:25-28; João 20:21; Gálatas 5:22-25; Romanos 8:38, 39; I João 4:4; Hebreus 10:25.)
[14] Para uma análise crítica dessa tendência: http://questaodeconfianca.blogspot.com/2010/05/escatologia-da-conspiracao.html
[15] Uma das teorias conspiratórias de Veith (referentes a adulterações do texto bíblico) mereceu uma refutação do Biblical Research Institute: http://biblicalresearch.gc.adventist.org/documents/Textus%20Receptus%20and%20Modern%20Bible%20Translations.pdf
As palestras especulativas de Veith também foram alvo de crítica publicada na Adventist Review: http://www.adventistreview.org/issue.php?issue=2009-1525&page=27
[16] Profetas e Reis, 626.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

PolêmiCAJÓN


“Haverá gritos com tambores, música e dança…”.

Esse é o texto onipresente nas discussões sobre música. Ele é aplicado indistintamente, sem nenhuma reflexão, sobre qualquer música ou instrumento que desagrade o portador do texto dos "gritos e tambores". Ele é usado inclusive contra quem não usa tambores, como os grupos a capela (!). É curioso o que o fanatismo cego pode produzir.
Recentemente ouvi falar do caso de alguns líderes de uma igreja adventista local que decidiram proibir o uso do cajón nos cultos.
E surgiu uma questão interessante: estritamente falando, o cajón não é um tambor. Tambores são "membranofones", possuem uma membrana esticada que é percutida. O cajón nada mais é que uma caixa de madeira, e poderia ser classificado entre os "idiofones" (como um prato ou um xilofone).
É interessante observar a confusão que isso causa naqueles que aplicam o texto dos "gritos com tambores" à música da igreja sem nenhuma reflexão. Para se livrar da confusão, tais pessoas 'esticam' o texto e o aplicam à percussão em geral. Mas isso gera um outra confusão: havia percussão na "lista de instrumentos do Templo" (que é outro argumento-padrão contra a música contemporânea.)
Assim, veja o dilema: se o texto se refere especificamente aos "tambores", os idiofones estão livres. Mas se o texto se aplica aos instrumentos de percussão em geral, então a Bíblia está errada ao recomendar esses instrumentos e o argumento da "lista de instrumentos do Templo" não deve ser usado (pois incluem os idiofones percutidos).
E poderíamos ampliar a confusão citando a bateria eletrônica, a percussão feita em sintetizadores, em teclados e softwares, o beatbox, a percussão programada em computadores, etc.

Que argumentos usaremos agora?
Qual seria o escape de quem usa o argumento "haverá gritos com tambores" sem pensar?
Uma opção talvez fosse dizer: "não importa se é real ou virtual, ao vivo ou gravado. Se faz 'som de percussão' tá fora!"
Essa seria uma fuga desesperada, mas igualmente inútil: é possível fazer 'som de percussão' numa infinidade de instrumentos.
Esse violão dispensa percussão:
Esse faz beatbox com a flauta transversa:
Esse faz percussão no piano:
Ninguém ousaria sugerir uma proibição ao violão, à flauta e ao piano, certo? É claro como o sol do meio-dia que os instrumentos são servos dos instrumentistas e fazem apenas o que o músico quer (e tiver habilidade de fazer).
E então, por que eu não deveria usar um cajón na minha igreja?
Se eu quisesse argumentar contra o cajón (o que não é o caso), eu não distorceria o texto dos "gritos com tambores". Eu talvez usasse argumentos como:
- "Desculpe-me meu jovem, mas você ainda não sabe tocar isso direito!"
- "Isso não combina com os hinos do hinário, só com música moderna. 'Tá feio!"
- "Você toca fora do ritmo e atrapalha os demais. Vá estudar e praticar." ( Mas isso valeria para qualquer instrumento)
- "A maioria dos membros dessa igreja é contra" (obviamente, essa pesquisa deve ter sido feita antes, e ser real, não um 'achômetro').
Repare que são argumentos discutíveis (alguns sofríveis e subjetivos), mas que pelo menos não tentam manipular as palavras da Mensageira do Senhor.

PS: Antes de entrar na discussão, experimente fazer esse teste sobre instrumentos.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O "argumento Caim"



A experiência de Caim, Abel e suas respectivas ofertas sempre surge no debate sobre música. Analisando-se alguns artigos e livros sobre o tema, percebe-se claramente que o fato de Deus ter rejeitado a oferta de Caim é rapidamente associado a elementos do culto cristão considerados polêmicos.
O argumento é: "Não podemos adorar a Deus como queremos, mas como Deus quer. Veja o caso de Caim!" A partir daí, o usuário do "argumento Caim" o aplica da seguinte forma: "O modo como EU adoro é 'oferta de Abel', e o modo como VOCÊ adora é 'oferta de Caim'".
Parece-me que o “argumento Caim” deteriorou-se como o “argumento do escândalo”. É uma espécie de carta-curinga, sacada da manga e encaixada sem critério algum em qualquer discussão sobre música e adoração.
Utiliza-se o “argumento Caim” para atacar desde o uso de spots de iluminação em cantatas de coral até para embasar “biblicamente” a proibição de se retirar o púlpito da plataforma.
Ironicamente, é comum ver na mesma pessoa que usa o “argumento Caim” a atitude extrema e violenta de Caim: dedo em riste, críticas, ataques e perseguições aos irmãos.

Refletindo sobre o tema, conclui-se que o “argumento Caim” só é aplicável a situações onde a expressa vontade de Deus estiver sendo desconsiderada na adoração.

“Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício mais excelente que o de Caim.” (Hb 11:4)

Abel ofereceu seu sacrifício pela fé, de acordo com a Palavra de Deus.

“De sorte que, a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.” (Rm 10:17)

Se adorarmos a Deus pela fé, nós o faremos de acordo com a Sua Palavra.
Se nossa adoração não é pela fé, em obediência à Palavra de Deus, ela se torna pecaminosa, pois "tudo o que não provém da fé é pecado" (Rm 14:23).

O caso de Caim envolve algo simples mas perigoso: substituir uma ordem de Deus por outra coisa, mesmo por coisas aparentemente boas e aceitáveis.

Os hipócritas da época de Jesus praticavam muitas coisas boas e aceitáveis, frutos de boas intenções. No entanto, isso se tornou pecado quando os mandamentos divinos começaram a ser substituídos por tais coisas:

“Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês.” Mt 15:6

Sobre isso, Jesus disse:

“Hipócritas! Bem profetizou Isaías acerca de vocês, dizendo: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens’". Mt 15:8-9

O caso de Caim não é apenas uma ingênua questão de gosto pessoal ("ele preferia frutos a cordeiros..."). É uma questão de desrespeito e desobediência deliberada. Longe de ser um sincero adorador ignorante, Caim era um rebelde que conhecia a vontade de Deus, mas decidiu desobedecer de propósito.

“Não sejamos como Caim, que pertencia ao Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque suas obras eram más e as de seu irmão eram justas.” 1 Jo 3:12

Deus é muito específico acerca do que quer de nós na adoração. No entanto, quando o "argumento Caim “ é usado na discussão sobre música, implicitamente colocamos várias normas e práticas que Deus NÃO especificou na adoração. Assim, cometemos o mesmo erro das pessoas a quem queremos corrigir: colocar a vontade humana à frente da vontade de Deus.

A seguir, a análise de algumas afirmações sobre o tema, encontradas em livros e artigos, sob a luz da Bíblia e dos escritos de Ellen White:

1) “O pecado de Caim foi uma ‘modernização’, uma ‘culturalização’
Não. O pecado de Caim foi desobedecer.
Caim levou a Deus uma simples oferta de gratidão, e não uma oferta pelo pecado [1].
Tecnicamente, trazer uma oferta “do fruto da terra” é algo encontrado na Bíblia, uma oferta legitimamente bíblica (Lv 2:1, 14; Nm 18:12, 13; Dt 26: 2, 4, 10). No entanto, não era esse tipo de oferta que o Senhor requeria naquele episódio.

“Sua oferta assemelhava-se à de Caim. Traziam ao Senhor os frutos da terra, os quais eram, em si mesmos, aceitáveis aos olhos de Deus. Muito bom era, na verdade, o fruto; mas, a virtude da oferta - o sangue do Cordeiro morto, representando o sangue de Cristo - isso faltava.”[2]

Não houve nenhum tipo de modernização ou culturalização. Houve sim uma desobediência a uma ordem expressa do Senhor. Ele ofereceu uma oferta tecnicamente correta, mas em substituição à oferta requerida por Deus.

“Caim obedeceu ao construir o altar, obedeceu ao trazer um ‘sacrifício’; prestou, porém apenas uma obediência parcial. A parte essencial, o reconhecimento da necessidade de um Redentor, ficou excluída”.[3]

A atitude de Caim indica que ele se achava justo. Aos seus próprios olhos, não havia necessidade de confissão de pecados e nem de misericórdia. Utilizar o “argumento Caim” contra inovações é ignorar a existência de ofertas do fruto da terra.

2) “A adoração de Caim foi ‘pomposa’, ‘chamativa’ e ‘de fazer barulho’”.
Não. A oferta de Caim foi uma “simples oferta de gratidão”[4].
Caim não estava preocupado nem mesmo em trazer “o melhor dos frutos”[5].
Não há nada de pomposo, chamativo ou barulhento na oferta de Caim. Ele trouxe sua oferta com “murmuração e infidelidade”[6].

3) “Caim ofereceu o seu melhor”
Não. “Caim não estava preocupado em trazer nem mesmo o melhor dos frutos”[7].
Abel sim trouxe o melhor, cheio de fé[8].

4) “Caim adorou com sinceridade”
Não. A oferta de Caim foi feita com murmuração, infidelidade e dúvida[9]. Caim não era um adorador do Deus vivo, ele era do Maligno (1 Jo 3:12).
Caim sabia a vontade de Deus, mas a recusou deliberadamente numa atitude de desrespeito e rebeldia[10].

5) “Caim não tinha cordeiros para oferecer”
Não era difícil para Caim conseguir um cordeiro. O próprio Abel o aconselhou a trazer um cordeiro. “(Caim) não estava disposto a seguir estritamente o plano de obediência e procurar um cordeiro e oferecê-lo com os frutos da terra. Meramente tomou do fruto da terra e desrespeitou as exigências de Deus.”[11].
Note a interessante possibilidade de oferecer o cordeiro com os frutos da terra.


Conclusão
Teologicamente, a oferta de Caim representa a tentativa de salvação pelas obras, sem cordeiro, sem sangue, sem os méritos de Jesus:

“O esforço que o homem faz em suas próprias forças para obter a salvação é representado pela oferta de Caim”[12].

Caim e Abel representam duas classes distintas: “fiéis X infiéis”, “salvos pela graça X legalistas”, “obedientes X rebeldes”. Eles não representam “os que cantam sem melismas X ‘melismeiros’”, nem “eruditos X populares”, muito menos “louvor com percussão X sem percussão”.

Assim, tanto o culto desordeiro e indecente quanto o silencioso culto gregoriano idólatra podem ser “oferta de Caim”. Independentemente do estilo e da música, ambos desobedecem a ordens explícitas de Deus.

O barulhento louvor da Carne Santa acompanhado de “gritos com tambores, musica e dança” é “oferta de Caim” por seus graves erros doutrinários e por sua irreverência. O culto ao som do órgão e do coral também pode ser “oferta de Caim” por sua ostentação e idolatria:

“O culto da Igreja Romana é um cerimonial assaz impressionante. O brilho de sua ostentação e a solenidade dos ritos fascinam os sentidos do povo, fazendo silenciar a voz da razão e da consciência. Os olhos ficam encantados. Igrejas magnificentes, imponentes procissões, altares de ouro, relicários com pedras preciosas, quadros finos e artísticas esculturas apelam para o amor do belo. O ouvido também é cativado. A música é excelente. As belas e graves notas do órgão, misturando-se à melodia de muitas vozes a ressoarem pelas elevadas abóbadas e naves ornamentadas de colunas, das grandiosas catedrais, não podem deixar de impressionar a mente com profundo respeito e reverência.
Este esplendor, pompa e cerimônias exteriores, que apenas zombam dos anelos da alma ferida pelo pecado, são evidência da corrupção interna.”[13].

Caim substituiu o que Deus pediu. Ele decidiu desobedecer. Esse argumento não pode ser utilizado contra inovações e estilos que não comprometam ordens claras e específicas de Deus. Podemos discutir racionalmente o que é melhor e mais conveniente ao culto sem apelar para o "argumento Caim" a todo instante.

_____________________________
[1] Parábolas de Jesus, 152.
[2] Evangelismo, 188.
[3] Patriarcas e Profetas, 72.
[4] Parábolas de Jesus, 152.
[5] História da Redenção, 52.
[6] História da Redenção, 52.
[7] História da Redenção, 52.
[8] A verdade sobre os anjos, 64.
[9] História da Redenção, 53.
[10] História da Redenção, 52; Patriarcas e Profetas, 72; 1Mens. Escolhidas, 233.
[11] A Verdade sobre os anjos, 64.
[12] Fé e Obras, 94.
[13] O Grande Conflito, 566 e 567.