
Hoje é dia de finados. Dia em que cristãos homenageiam os mortos, oram por eles, e até mesmo falam com eles. De quem aprenderam isso?
Como pastor, já participei de inúmeros funerais. E é com assombro que vejo cristãos bem-intencionados consolarem os enlutados com coisas como “ele foi para a glória”, “a vovó agora virou uma estrelinha” ou “ele agora é um anjinho”. Assusta-me esse espiritismo evangélico, que soterra a relevância da crença na ressurreição debaixo dos escombros do ocultismo gospel.
Prefiro me consolar com a certeza da ressurreição, conforme ordena a Palavra:
“Consolai-vos uns aos outros com estas palavras” (1 Ts 4:18)
Não se engane: a morte é nossa inimiga. O último inimigo a ser destruído é a morte (1 Co 15: 26), a morte é o salário do pecado (Rm 6:23), e o destino da morte é o lago de fogo (Ap 20:14).
Com quem os cristãos aprenderam a romantizar a morte, tratá-la como amiguinha doce e bela, passagem para o plano superior da luz?
Combatendo espiritismo com espiritismo
Com o sucesso recente de filmes espíritas, pudemos observar uma patética tentativa de resistência cristã aos seguidores de Chico Xavier. Patética por um motivo: alguns cristãos acreditam igual os espíritas na imortalidade incondicional da alma. Discordam apenas da possibilidade de entrar em contato com os mortos. Mas a crença é a mesma.
É o sujo falando do mal lavado. E ambos, de mãos dadas, fazem eco ao ensino da serpente: “certamente, não morrerás” (Gn 2:16 e 17 e 3:4)
Os novos reformadores, tão preocupados com o retorno à ortodoxia, devem pensar seriamente em reformar isso. Ou será que o compromisso com a tradição sufocou o ímpeto dos reformadores e transformou o mote “reformados sempre se reformando” numa frase sem sentido?
Precisamos continuar a jornada de retorno ao ensino bíblico, e isso passa pelo expurgo da crença imortalista do meio cristão. Alguns teólogos e pensadores tem tentado, não sem enfrentar violenta oposição.
Oscar Cullman, comparando o conceito bíblico de alma com o conceito grego diz que “a diferença com respeito à alma grega é evidente: a alma grega sobrevive sem o corpo”.
Wheeler Robinson diz que “a idéia hebraica de personalidade é um corpo vivente e não uma alma encarnada.”
Ed René Kivitz explica que a tradição bíblica semita “acredita que as dimensões material e imaterial do ser humano são indissociáveis, isto é, uma não existe sem a outra, sendo o ser humano uma unidade material-imaterial.”
Millard Erickson descreve o estado do homem na morte como “anormal e incompleto”.
Conrad Bergendoff alerta contra o compromisso que teólogos fizeram com a filosofia platônica e com a crença dualística com as seguintes palavras: “os evangelhos não fornecem base para uma teoria de redenção que salve almas à parte de corpos aos quais pertencem. O que Deus ajuntou, filósofos e teólogos não deveriam separar”.
O ensino bíblico é claro: a alma não é imortal (Ez 18:4).
Imortalidade só é inerente a Deus, não ao homem (1 Tm 6:15 e 16).
Imortalidade, vida eterna, é um presente de Deus ao homem salvo, não a todos indistintamente (I Jo 5:12; Jo 3:16; Rm 2:7).
Apesar dos seres humanos serem especiais (Sl 8), na morte, somos nivelados aos animais (Ec 3:18-21).
Na morte não há louvor, não há consciência, não há ida imediata para a “glória” (Ec 9:5 e 6; Sl 146:4).
Por isso acreditamos na ressurreição. Se o homem fosse imortal, e partisse para viver no céu imediatamente após a morte, a ressurreição seria uma grande farsa, uma piada de mau gosto:
“Olhe Fulano, você está aqui morto-vivo no céu, mas eu preciso que você volte e entre novamente no seu corpo pois eu vou ressuscitá-lo para trazê-lo de volta aqui para o céu, onde você já estava.”
Qual a lógica disso? A Bíblia, quando lida inteira, ensina isso? Até quando continuaremos tolerando e admirando o cavalo-de-tróia espírita-pagão?

Se os adventistas crêem, deve ser errado
O preconceito teológico tem gerado algumas táticas para ridicularizar ou desacreditar os eruditos que abandonaram o ponto de vista dualístico tradicional da natureza humana. Samuelle Bacchiocchi destaca uma dessas táticas: associar tais teólogos com liberais ou com grupos tidos como sectários, como os adventistas. A falácia grosseira é: “se grupos como os adventistas acreditam nisso, então deve estar automaticamente errado e eu nem vou perder tempo examinando a questão”.
O teólogo Clarck Pinnock descreve essa tática:
“Parece que um novo ‘critério’ para a verdade foi descoberto, segundo o qual, se os adventistas ou os liberais mantêm algum ponto de vista, esse deve estar errado. Aparentemente, a defesa da verdade pode ser decidida por sua associação e não precisa ser testada por critérios públicos em debate aberto. Tal argumento, embora inútil em discussão inteligente, pode surtir efeito com os ignorantes que são ludibriados por tal retórica.”
Na realidade, quando homens da envergadura de John Stott, Philip Hughes e Cullmann se levantam com argumentos bíblicos contra a crença na imortalidade, recebem em contrapartida uma enxurrada de argumentos emocionais, apelos à autoridade e à tradição. Parece haver uma preocupação com o custo de abandonar a crença dualística tradicional da natureza humana. “Se a gente abandonar essa crença, imagina quantas mudanças ocorrerão... Vai dar uma trabalheira!”
Imagina se os reformadores tivessem esse nível de preocupação com a tradição...
Pelo menos os católicos são honestos em admitir sua subserviência à tradição católica.
O medo do “efeito dominó” doutrinário pode estar na base do apego emocional a crença na imortalidade. Abandonar isso geraria um transtorno enorme que exigiria um reestruturação de muitas denominações. No entanto, o “efeito dominó” acontece dos dois lados: manter uma crença não-bíblica como essa gera práticas e outras crenças igualmente não-bíblicas.
Por Isaac Malheiros Meira
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E examine alguns teólogos reformados e evangélicos que questionam ou já abandonaram a crença dualística:
# Oscar Cullmann,
Imortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament (N. York, 1958).
# C. H. Pinnock, “The Conditional View”, em
Four Views on Hell, W Crocket, ed., (Grand Rapids, 1993).
# John W. Stott e David Edwards,
Essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue (Londres, 1988).
É constrangedor o silêncio dos seminários teológicos e das editoras cristãs brasileiras a respeito desse tema. Esse silêncio gera uma falsa impressão de que há um consenso teológico a favor da imortalidade, o que está longe de ser verdade.