segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O repertório carismático: eles estão entre nós!

Andrae Crouch
Numa conversa sobre os rumos da adoração adventista, ouvi o seguinte: “Usar músicas que estejam relacionadas aos carismáticos mudará nosso culto e, consequentemente, nossa teologia”.

Para nós, adventistas, essa afirmação é incrível. Nosso hinário vem de fontes teológicas tão diversificadas que é um verdadeiro milagre não sermos ecumênicos! (risos). Se cantar as músicas que os carismáticos cantam nos torna carismáticos, o que diremos de nossos hinos católicos e reformados (calvinistas)? Como foi possível continuarmos adventistas até hoje cantando canções de antinomistas e imortalistas?

A adoração adventista sempre dialogou com movimentos vizinhos, usando o que é cabível em nosso ambiente teológico. Talvez os autores ignorem que nosso hinário inclui canções das raízes reavivalistas/pentecostais e do próprio movimento carismático recente. Estamos, desde o nascimento, envolvidos musicalmente com eles e isso nunca representou um grande problema. Uma rápida olhada em nosso hinário revela algumas coisas curiosas. Confira:

Phoebe Palmer, uma das mentoras do Movimento Holiness[i] escreveu vários hinos, e alguns deles ainda estão no Hinário Adventista do Sétimo Dia (HASD): “Vigiai Cristãos” (HASD 126) e “Agora posso ver” (HASD 516). Sua filha, Phoebe Palmer Knapp, é co-autora do famoso “Bendita Segurança” (HASD 240). Ela influenciou William Booth e seu Exército da Salvação.[ii]

Charles William Fry, autor de “Achei um grande amigo” (HASD 88) e “Vem, Jesus, nos despertar” (HASD 405), foi um dos fundadores do estilo musical do Exército da Salvação, utilizado no adventismo pioneiro pelos fanáticos da Carne Santa. Ballington Booth, autor de "Minha Cruz” (HASD 297), era filho de William Booth. Outros hinos do Exército da Salvação são “Louvores a meu Rei” (HASD 81) e “Doce Lar” (HASD 566). Além disso, Fanny Crosby, autora de vários hinos do Hinário Adventista, mantinha estreita ligação com o Exército da Salvação e com o movimento Holiness.[iii]

John Wimber (HASD 496) foi carismático, um dos fundadores das igrejas VineyardLanny Wolfe (HASD 578) sempre esteve ligado à United Pentecostal Church (não trinitariana), e atualmente é diretor de música de uma igreja pentecostal não-denominacional.

Laurie Klein compôs “Eu te amo, ó Deus” (HASD 579), um dos hinos do movimento carismático popularizados por Jack Hayford. Hayford (HASD 73) é pastor pentecostal e foi presidente da Igreja do Evangelho Quadrangular de 2004 a 2009.

Andrae Crouch (HASD 249) é pentecostal da Igreja de Deus em Cristo, diretamente ligada ao movimento pentecostal da rua Azuza. Jimmy Owens (HASD 587) é um dos pioneiros da música cristã contemporânea e do movimento de Louvor e Adoração. Outras canções popularizadas nos cultos pentecostais/carismáticos (Como “Suave Espírito” [HASD 158], de Doris Akers[iv]) e contemporâneos (como “Em tuas mãos” [HASD 480], de Diane Ball) também fazem parte de nosso repertório.

Além disso, se fôssemos falar também do repertório "contemporâneo" em nosso hinário, a lista aumentaria exponencialmente. Quase todos os pais da música cristã contemporânea estão em nosso hinário: Ralph Carmichael, Kurt Kaiser, Bill e Gloria Gaither, John W. Peterson, Don Wyrtzen e outros. Sem perceber, já realizamos nossos cultos acompanhados de muita gente ligada ao repertório contemporâneo e carismático.

Na verdade, existem vários outros hinos ligados aos movimentos Holiness e pentecostal no Hinário Adventista. Cantamos esse repertório há mais de um século! Historicamente, a IASD nunca esteve longe da “ameaça” pentecostal. No entanto, desde sempre conseguimos reter o que é bom dos nossos vizinhos.[v]

Nosso repertório de hinos também está presente em outros estilos de culto. Até o culto pentecostal clássico acontece ao som de hinos. Como escreveu Don Williams, “os hinos, sem dúvida, podem também ser usados na adoração contemporânea, na combinada e na carismática.”[vi]

Assim, o medo do carismatismo na música contemporânea não se justifica se continuarmos a fazer o que sempre fizemos: seleção criteriosa. Creio duas coisas deveriam acontecer para contextualizar a adoração de maneira segura:

1) Incentivarmos a criação de nosso próprio repertório de louvor congregacional contemporâneo. Estamos engatinhando nesse sentido, mas já temos um bom material inicial para selecionar.

2) Continuarmos sendo biblicamente criteriosos na seleção de músicas de louvor do meio evangélico. O isolamento não é necessário, como mostra nossa história.

Isaac Malheiros Meira

[i] Leia sobre a relação do movimento Holiness com as manifestações extáticas aqui: http://www.adoracaoadventista.com/2011/12/culto-da-carne-santa-uma-copia-de.html
[ii] William Booth, fundador do Exército da Salvação, foi especialmente influenciado pelo ministério de Phoebe Palmer a partir dos anos 1840. Palmer ensinava um “caminho mais curto” para receber a inteira santificação e enfatizava a importância da “experiência” em detrimento da precisão teológica. Ver
Phoebe Palmer, “The Shorter Way”, em Voices From the Heart (Grand Rapids, MI.: Eerdmans Press, 1987), 156-158.
[iii] Rodney L. Reed, “Worship, Relevance and the Preferencial Option for the Poor in the Holiness Movement, 1880-1910”, em Wesleyan Theological Journal, 98.
[iv] Essa canção, por sua mensagem centrada no Espírito, rapidamente se tornou um dos hinos preferidos dos pentecostais e carismáticos. É denunciada por tradicionalistas como uma das culpadas da invasão pentecostal nas igrejas históricas. Ver, por exemplo: http://www.pbministries.org/Theology/Laurence%20Justice/embrace_pentecostalism.htm
[v] Um bom exemplo disso são as reuniões campais, uma prática reavivamentista que frequentemente se degenerava em fanatismo, mas que foram uma bênção para o adventismo. Apesar das campais terem uma origem questionável, serem quase sempre acompanhadas de excessos emocionais, e serem regularmente realizadas pelo movimento Holiness e por outros grupos não alinhados à teologia adventista, os adventistas não deixaram de usar esse método. Ellen White claramente endossou a realização de campais, mesmo estando ciente do fanatismo que rondava as campais Holiness e do risco de excessos no adventismo. Para ler mais sobre isso: http://www.adoracaoadventista.com/2011/12/culto-da-carne-santa-uma-copia-de.html
[vi] Don Williams, “Resposta da adoração carismática”, em Adoração ou Show?, 91.

domingo, 22 de dezembro de 2013

A conexão da música com a desconexão da Palavra

Li um artigo escrito por um amigo,[i] e para poupar espaço em sua página, vou tecer alguns comentários por aqui. Ele escreveu sobre a relação entre a música contemporânea de adoração, o culto e a pregação.  Para o autor, a atual música, que busca uma “conexão” com Deus, marca um período de desconexão da Palavra. Concordo com a questão da desconexão da Palavra, mas discordo do papel atribuído à música nesse processo. Eis minhas razões:

A música contemporânea e a mudança na liturgia
É fácil perceber que a desconexão com a Palavra ocorre com ou sem música “conectante”.
O liberalismo teológico nasceu em igrejas litúrgicas, tradicionais, sem música “conectante”. A neo-ortodoxia, nasceu em igrejas reformadas, tradicionais, históricas, sem música “conectante”. Ambos os movimentos esvaziaram a Bíblia de autoridade, desconectaram pessoas da Bíblia do modo mais perigoso.


Veja que curioso: muitos segmentos católicos, luteranos e reformados se renderam ao liberalismo teológico e à neo-ortodoxia. Mas a liturgia nessas denominações se mantém geralmente intocada. Manter a liturgia não impediu a mudança na teologia da revelação, e consequentemente, no púlpito. O estilo musical do culto continua o mesmo, mas a teologia se desconectou da Palavra.

A história da IASD mostra que mudar a liturgia e o estilo musical não é necessariamente problema. E a história das denominações em geral mostra que manter a liturgia e o estilo musical não garante a boa teologia. Em nossa própria história podemos encontrar períodos sérios de desconexão da Palavra, e isso nada teve a ver com música.[ii] Para uma análise dessa mudanças pela Dra. Lilliane Doukhan, clique aqui

A música contemporânea e os sermões fracos
Segundo o autor, as canções contemporâneas mudaram a pregação: os sermões são rasos, e o auditório não se interessa por sermões mais “profundos”. Mas a impaciência dos jovens com os sermões não é culpa da música. A mudança no perfil do adorador tem várias causas. É uma mudança no perfil de uma geração. Jogar isso na conta da música contemporânea de adoração é equivocado.[iii]

Além disso, em geral, nossos pregadores não seguem as orientações inspiradas sobre a arte de pregar. Sermões longos, áridos, complicados, não são apenas inadequados à geração Y, mas estão na contramão do que Ellen White recomenda.[iv]

Concordo que há uma crise no púlpito adventista, mas não foi a música quem provocou, e não é a música que vai consertar isso.


A música contemporânea e o “analfabetismo bíblico”
Sempre achei que descrever os adventistas como “o povo da Bíblia” é, no mínimo, um exagero triunfalista. Existem centenas de denominações que reivindicam esse título da mesma forma como o fazemos. Sempre tivemos nossas dificuldades com relação ao estudo da Bíblia. O analfabetismo bíblico não é fenômeno recente no adventismo. Ellen White já alertava sobre isso nos dias dela.[v] Basta verificar nossa história e constatar o grande número de heresias e movimentos dissidentes com ideias estapafúrdias que levaram centenas de adventistas à apostasia.

Jogar o analfabetismo bíblico na conta da música contemporânea e do púlpito também é um erro (além de uma inversão na relação causa-efeito). Não se deve esperar que a igreja seja alimentada biblicamente apenas pelo púlpito ou pela música. Se o povo não estuda a Bíblia por si, não há sermão ou louvor que resolva isso!

O analfabetismo bíblico é raiz dessa árvore, não fruto. É causa, não conseqüência do problema. É a própria doença, e não apenas um sintoma dela.

A música contemporânea e a religião da “sensação”
Suponhamos que a emoção seja, de fato, um problema na adoração.[vi] De acordo com o autor, a “postura de adoração orientada por um perfil carismático chegou a nós por meio do worship.” E tal postura “dispensa a profundidade do estudo da Bíblia como fundamento da adoração, dando espaço a experiências pessoais e legitimando o sentimento como meio de conecção [sic] com o sagrado.”

O problema desse argumento é que o desprezo à Bíblia e à revelação objetiva historicamente não são culpa da música contemporânea e nem do carismatismo. Existem tantos outros movimentos teológicos que valorizam a experiência e não são carismáticos e nem tem nada a ver com o “worship”.

A valorização da experiência pessoal vem de longe, no mínimo desde os pietistas, passando pelos metodistas, os reavivalistas, o movimento “Holiness”, os campmeetings, etc. O adventismo nasceu em berço metodista, imerso numa cultura de campmeetings, “Holiness” e “revivals”. Nosso hinário traz hinos de Zinzendorf e Neumeister, que eram pietistas, da religião do coração, experiencial, subjetiva.

Continuamos cantando hinos metodistas, do Exército da Salvação, “Holiness” e dos reavivamentos que levaram o pentecostalismo. Continuamos cantando hinos dos campmeetings reavivalistas (mesmo sabendo que eles caíam no chão, pulavam, choravam). Você acha que devemos parar de cantar hinos de Andrae Crouch (pentecostal)? E de John Wimber, fundador da Vineyard? E os negro spirituals? É tanto hino de gente que curtia as sensações, que podemos dizer que o hinário é “sensacional”.

Ou seja: estamos há séculos ligados, através dos hinos, à religião das sensações, e nosso hinário mostra isso. Por isso, é errado jogar a culpa da religião sensacional no “worship”, na música contemporânea. Aí estão as igrejas pentecostais tradicionais para mostrar que os hinos também pavimentam o caminho das “sensações”.[vii]


O carismatismo não é uma novidade, fruto do “worship”. Na realidade, o adventismo já nasceu enfrentando ondas de fanatismo carismático. O fanatismo de Indiana aconteceu ao som de hinos que cantamos até hoje. Basta verificar o “Garden of Spices”[viii] (hinário usado na campal de Indiana). Novamente, um bom repertório não foi suficiente para evitar distorções teológicas.[ix]

“Boa” música e má teologia
Se evitássemos a música contemporânea e o “worship”, estaríamos seguros, certo? Existe uma relação direta entre música tradicional e teologia correta, certo? Errado.

Pense:  qual era a característica musical do culto romano durante os 1260 anos de supremacia? Era música “boa”, mas péssima teologia! Veja a descrição do culto romano no Grande Conflito, p. 566.

Qual era a característica musical dos cultos do escolasticismo protestante? Excelente música (pelo menos no luteranismo), culto digno e sóbrio, mas a teologia era caracterizada pelo dogmatismo, péssima hermenêutica e submissão da Bíblia às pressuposições humanas.

Qual era a característica musical da pregação legalista que dominou o adventismo antes de 1888? Tradicional, ortodoxa, mas a teologia era equivocada.

Qual era a música que acompanhava os movimentos fanáticos dos dias de Ellen White? Diversificada. Havia fanatismo e heresia com música, sem música, ao piano, com banda ruidosa, sem banda ruidosa, etc. Ex.: o caso dos Mackin, a campal de Indiana[x] e outros. Não existe uma fórmula musical para a heresia. O fanatismo é diversificado, e se manifesta “em diferentes maneiras”.[xi]


Sejamos bíblicos
Apesar de minha discordância, penso que o pastor Douglas chama atenção para um problema real: o esvaziamento da autoridade da Bíblia como princípio regulador do culto. Meu apelo é que voltemos à Bíblia nesse assunto. Já há muita história, psicologia, sociologia, antropologia, musicologia envolvida nessas discussões. Muito do que se supõe ser matéria bíblica é apenas opinião costurada com textos-prova arrancados a fórceps da Bíblia. Devemos nos voltar à Bíblia, deixar que ela fale naturalmente, e por ela medir nosso culto, nossa liturgia, nossa música, nossa adoração e nosso púlpito.


Isaac Malheiros Meira

[ii] Ver por exemplo, George Knight, A mensagem de 1888 (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2009). A ortodoxia adventista, o apego à tradição, nesse período levou a uma desconexão da Palavra.
[iii] O autor escreveu um livro sobre a “geração Y” e sabe que essa impaciência, desatenção e dificuldade de se concentrar da atual geração não se deve à música de adoração.
[v] “O temor do Senhor está-se extinguindo no espírito de nossos jovens, devido à sua negligência de estudar a Bíblia.” Ellen White, Conselho aos Pais, professores e estudantes, p. 89.
[vi] Não penso que seja. Basta uma olhada nos salmos e seus profundos tons emocionais para perceber que a Bíblia não vê os sentimentos humanos como prejudiciais na adoração. Os salmos vão além, e expressam emoções que eu nunca vi em músicas de worship, como o Sl 137:9. Se usássemos os critérios de alguns críticos da música contemporânea, os Salmos seriam classificados como “existencialistas” e “emocionalistas”.
[vii] A Congregação Cristã do Brasil, pentecostal, é notável por valorizar os hinos tradicionais e a música instrumental de orquestra. As cruzadas de curas e milagres de Benny Hinn, famoso pregador pentecostal, ocorrem geralmente ao som de música evangélica tradicional, com órgão e coral.
[viii] Para uma análise do conteúdo do “Garden of Spices”, ver http://www.adoracaoadventista.com/2013/03/o-problema-nao-foi-o-repertorio.html
[xi] Sobre isso, leia “Fanatismo em diferentes maneiras” em http://www.adoracaoadventista.com/2011/12/fanatismo-em-diferentes-maneiras.html

terça-feira, 9 de julho de 2013

Provando mais do que pretendia

George Knight
Trad.: Isaac Malheiros
Surpreendente como possa parecer, algumas vezes nós provamos mais do que queríamos se estendemos nossa metodologia às suas conclusões lógicas.
O caso das joias
Por exemplo, alguns argumentam que uma das melhores razões para o cristão moderno não usar joias é que nós estamos atualmente vivendo no antitípico Dia da Expiação.
No Velho Testamento, o Dia da Expiação era o dia mais solene no calendário judaico. Era um dia de auto-exame, julgamento e purificação. E não era apenas um dia para os sacerdotes oferecerem sacrifícios especiais. Todo indivíduo tinha que se envolver se não seriam “cortados”. Repetidamente os israelitas foram instruídos a se “afligirem” nesse dia tão solene (Lv 16:29, 30; 23:27, 32; Nm 29:7). “Porque toda a alma, que naquele mesmo dia se não afligir, será extirpada do seu povo.” (Lv 23:29). Era um dia realmente sério.
 “O mandamento para ‘se afligir,’” escreve Gordon Werham, “sublinhou a necessidade de cada indivíduo examinar a si mesmo e arrepender-se de seus pecados.”[1] Outros tem argumentado que parte dessa aflição seria a humildade e simplicidade no vestuário. Assim, aqueles que estivessem realmente examinando o coração teriam abandonado as joias.
Acho que essa é uma posição interessante. Mas me parece ser mais simples provar que ninguém deveria ter relações sexuais no antitípico Dia da Expiação. Afinal, Lv 15:16-18 diz que aqueles que tivessem relações sexuais estariam ritualmente impuros até o pôr-do-sol. O que implica que eles estariam desqualificados para exercerem as atividades religiosas do Dia da Expiação anual.
Quando essa interpretação é estendida ao dia antitípico da Expiação, se torna ainda mais fascinante. Uma coisa é não ter sexo num dia santo; outra coisa é não ter sexo durante todo o período antitípico. Claro que quem se inclinar a tal aplicação também poderia encontrar justificação escatológica para essa posição. Afinal, Ap 14:1-5 não ensina que os 144 mil são “virgens”? Enquanto alguns possam pular de alegria sobre tal interpretação, outros provavelmente a veriam como mais "aflição" do que eles poderiam suportar.
E claro, é ainda mais fácil provar pela lógica acima que todo o trabalho está proibido no dia antitípico da Expiação (Lv 23:28, 30, 31; Nm 29:7). Mas enquanto isso é mais facilmente provado, a mente mediana não vê nas consequências nada tão interessante para contemplar como no argumento do não-sexo.
É importante apontar claramente que eu não estou argumentando a favor ou contra o uso de joias, o sexo ou o trabalho. Meu objetivo é o uso correto das Escrituras. Especificamente, estou apontando que algumas vezes nós inadvertidamente provamos mais do que queremos através do uso da lógica relacionada à Bíblia. É importante também notar que não estou duvidando da sinceridade de quem usa tais argumentos. A questão é mais de metodologia do que de sinceridade. Podem existir excelentes argumentos contra o uso de joias (bem como contra o sexo, e o trabalho) na Bíblia, mas me parece que o argumento relacionado ao dia antitípico da Expiação não é um deles. Tipologia (bem como as parábolas), enquanto válida para muitas inferências, tem limitações.
O caso da ordenação de mulheres
Outra ilustração de um argumento que prova mais do que pretende tem a ver com a ordenação de mulheres. A Igreja Adventista (como várias outras denominações) tem visto uma grande quantidade de argumentações de ambos os lados nesse assunto nos últimos anos.
Um orador recentemente baseou seu argumento contra a  ordenação feminina no fato de que a igreja Adventista é uma igreja da Bíblia, e, portanto, “a Palavra de Deus deve ser nosso foco”. Dada essa sólida fundação, ele apropriadamente citou Is 8:20: “À lei e ao testemunho: se eles não falarem de acordo com essa palavra jamais verão a alva.”
A seguir, ele guiou seus ouvintes à “mensagem atemporal” de 1 Timóteo 2, enfatizando especialmente o verso 12: “Não permito que a mulher tenha autoridade sobre o homem” (Ele parafraseou o texto). Isso foi seguido por um tríplice argumento em favor da liderança masculina.
Esse orador estava certo de que a advertência de Paulo não tem nada a ver com cultura. Ao contrário, o conselho foi estabelecido como um imperativo moral universal, e transgredi-lo é nada menos que o “descarrilamento da locomotiva da missão da igreja”.
A real questão , ele afirmou, era que nós confiamos nos escritores da Bíblia. Nesse ponto o argumento se tornou mais intenso e mais interessante de uma perspectiva hermenêutica. “Agora, a questão é”, disse ele à sua audiência, “como nós interpretamos a Bíblia?” Sua resposta foi que a Bíblia não precisa de interpretação. Ou, como ele mesmo disse: "A Palavra de Deus é infalível; aceitá-lo como ele lê. Temos muitos conselhos sobre o perigo de modificar as instruções de Deus .... O que precisamos, como adventistas do sétimo dia, amigos, é a submissão à Palavra de Deus, não reinterpretação" (itálicos acrescentados).
Posteriormente, ele citou Ellen White, dizendo que "Deus terá um povo na terra que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas". Ele concluiu seu estudo, em parte, ao afirmar que ele era contra a ordenação de mulheres ao ministério, porque "viola a doutrina das Sagradas Escrituras, por não aceitar as Escrituras como claramente a lemos" (itálicos supridos).
O que foi realmente provado?
Não há dúvida de que ele estava falando a honesta convicção do seu coração. Mas eu fiquei atônito quando li e assisti sua apresentação enérgica. Por um motivo: 1 Timóteo 2:12 não diz absolutamente nada sobre ordenação. Então novamente, eu mal pude acreditar que a apresentação viera de um Adventista do Sétimo Dia; talvez um calvinista conservador, mas não um adventista. Afinal de contas os adventistas tem o fenômeno Ellen White.  Fui atingido em cheio no rosto com o fato de que se alguém aceitasse suas pressuposições, o que na verdade havia sido demonstrado era que Ellen White era uma falsa profetisa.
Roger Coon ilustra bem o que estou dizendo quando ele relata sua experiência com um evangelista itinerante que veio à Napa, Califórnia, e colocou um grande anúncio no jornal prometendo destruir as doutrinas da Igreja Adventista numa apresentação na quinta-feira á noite e demolir sua profetisa na semana seguinte. Coon assistiu às duas sessões. Na segunda, o evangelista “provou” que a Igreja Adventista era falsa porque um de seus pioneiros fundadores era uma mulher que desafiou os ensinos do apóstolo Paulo proibindo mulheres de falarem nas igrejas cristãs.
Adventistas, por razões óbvias, sempre resistem a essa interpretação. A igreja tradicionalmente tem justificado o ministério público de Ellen White por perceber que o conselho sobre mulheres permanecerem em silêncio na igreja em 1 Tm 2:11, 12 estava enraizado no costume de uma época e de um lugar, e não era para ser aplicado grosseiramente agora que as circunstâncias mudaram. Portanto, como diz o Comentário Bíblico Adventista: “Por causa da ausência geral de direitos femininos privados e públicos à época, Paulo sentiu que era conveniente dar este conselho para a Igreja. Qualquer violação grave de costumes sociais aceitos traz opróbrio sobre a igreja .... Nos dias de Paulo, o costume exigia que as mulheres se colocassem em segundo plano.”[2]
Vamos voltar ao nosso orador adventista e examinar com mais cuidado o uso que ele fez de 1 Timóteo 2. A primeira coisa a se notar é que ele leu apenas o pedaço do texto que era adequado ao seu propósito. As palavras que estão imediatamente antes do trecho que ele citou são: “A mulher deve aprender em silêncio, com toda a sujeição” (1 Tm 2:11, NVI). E as palavras que estão imediatamente após a “mensagem atemporal” que ele leu apenas reforça esse sentimento. Sua paráfrase também deixou de fora as palavras "ensinar ou" uma vez que seu único foco era sobre a restrição de lidar com a "autoridade". Permitam-me citar o versículo 12 na íntegra: "Eu não permito que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio" (NVI).
Agora, é óbvio que se alguém está testando tudo no sentido mais estrito pelas palavras lei e o testemunho, e se não está "modificando" as instruções de Deus (ou as reinterpretando), mas simplesmente aceitando as Escrituras como "claramente se lê", então é uma conclusão necessária que Ellen G. White deve ser uma falsa profetisa do tipo mais grave.
Para dizer o mínimo, ela raramente permaneceu em silêncio na igreja. Na verdade, ela ensinava com autoridade para homens e mulheres em todos os lugares onde esteve. Ela foi a principal transgressora se de fato 1 Tm 2:11, 12 está expressando uma "mensagem atemporal" que não precisa de interpretação.
Vamos encarar os fatos: após alguém examinar todos os argumentos sobre liderança e /ou o significado de Eva pecar antes de Adão, e após ser exposto a todos os ótimos argumentos vindos do grego e hebraico bíblicos, e da erudição alemã e francesa, o fato é que a Bíblia diz em bom português que mulher não pode ensinar, que elas devem ficar em silêncio.
É claro que, se a hermenêutica permite levar em conta o tempo e lugar em que a Bíblia foi escrita, então o problema não é tão sério. Mas o nosso amigo não se permitiu nenhuma saída. Assim, ele está preso ao fato de que, quando testada por uma "leitura simples" da Bíblia, Ellen White é uma falsa profetisa. Ele provou mais do que pretendia.
Por outro lado, se alguém admite que a parte sobre o silêncio precisa ser um pouco “modificada” (deveria eu ser ousado o suficiente e dizer "interpretada" ou "contextualizada" ao tempo e lugar?), então deve permitir que tal licença se estenda ao verso inteiro. Mas isso, é claro, levaria a um enfraquecimento de todo o argumento. Embora isso possa parecer assustador para alguns, a única alternativa é ficar empacado com uma falsa profetisa.
Os bons pontos do meu argumento parecem ter sido desconsiderados por dois livros recentemente publicados que seguem a mesma linha geral de argumentação, como discutido acima. Ambos veem 1 Timóteo 2:11-14, junto com a passagem paralela de 1 Coríntios 14:34, 35, como sendo textos cruciais no processo contra a ordenação (mesmo que nenhuma dessas passagens mencionem o tema), ambos veem a questão como sendo de autoridade bíblica, e ambos tomam a posição de que a Bíblia pode ser fielmente lida apenas como ela é.
Dito isto, no entanto, eles imediatamente começam a modificar e interpretar a parte sobre o silêncio das mulheres na igreja. Como um dos livros aponta, "a questão aqui não é amordaçar as mulheres em silêncio." O outro livro afirma que a passagem de 1 Coríntios certamente não significa que as mulheres têm que ficar em silêncio na igreja, pois isso “estaria em contradição com outro ensinamento paulino". "A conclusão é que a restrição" à fala das mulheres na igreja "deve ser em referência ao ensinamento autoritativo, que é uma parte do trabalho pastoral, a posição de liderança espiritual e autoridade sobre a congregação."
Ora, essa é uma interpretação interessante, mas ela não tira Ellen White do anzol do falso profeta. Afinal de contas, ela falou bastante com autoridade até mesmo para os pastores líderes, tanto na igreja como fora. Na verdade, ela encontrou-se com bastante frequência em conflito público com os ministros masculinos, e argumentou com muita autoridade, apesar da advertência de Paulo.
É um ponto interessante que por alguns anos Ellen White recebeu credenciais ministeriais e suas credenciais eram de ministro ordenado, ainda que ela nunca tenha sido tecnicamente ordenada pela imposição de mãos. Ela foi (e é) o ministro mais "autoritativo" que a Igreja Adventista do Sétimo Dia já teve. Se alguém no adventismo - homem ou mulher - já falou com autoridade, foi Ellen White.
Quando o segundo volume trata de explicar o significado da afirmação sobre mulheres ficando em silêncio em 1 Tm 2:11-14, ele chega ao ápice da modificação e interpretação adaptada. "O que é proibido para as mulheres", nosso autor nos diz: "é ensinar nos cultos como parte do ofício eclesiástico de pastor, que envolve o exercício da autoridade espiritual. Mulheres que são convidadas a participar dos cultos, seja orando ou exortando, o fazem com base na autoridade delegada pelo pastor homem que ocupa o cargo eclesiástico e espiritual, cuja autoridade é derivada de Cristo "(itálico no original).
É muita coisa para interpretar, é muita coisa para apenas ler em simples palavras na Bíblia.
Mesmo essa reconstrução maciça do texto não tira Ellen White do anzol. Ela exercia autoridade espiritual em público e particularmente, e seus ouvintes eram de ambos os sexos. Claro, as pessoas podem aprimorar suas definições de modo a fazer Paulo expor suas conclusões, mas fazer isso dificilmente é uma leitura das "palavras simples" da Bíblia. E tal procedimento certamente falha ao não seguir o seu próprio método hermenêutico às suas conclusões lógicas.
Alguns pensamentos finais
Antes de sair do estimulante assunto da ordenação feminina, talvez eu deva compartilhar mais um argumento que prova mais do que pretendia. Um dia, em minha aula de formação pastoral, um de meus alunos veio com a “resposta infalível” à questão da ordenação feminina. “Leia o Antigo Testamento,” ele disse. “Todo sacerdote ordenado era homem.”
 “É verdade,” eu respondi, “mas você provará muito mais se mantiver seu argumento. Se você seguir sua lógica, terá que concluir que muito poucos, incluindo você, são biblicamente aceitáveis para a ordenação, pois o Antigo Testamento aprovou apenas a ordenação de homens orientais. E mesmo assim, não é qualquer oriental. Eles tinham que ser hebreus, e também da linhagem de Aarão, da família levítica.”
 “Bem,” disse alguém que queria estender o argumento, “veja Jesus. Ele escolheu apenas discípulos homens.” É verdade, mas isso pode ser discutido, pois ele escolheu como discípulos apenas judeus que não eram da Diáspora.
 “Mas,” disse outro, “Paulo era um homem da Diáspora que foi uma espécie de discípulo, mesmo não sendo um dos doze.”
Sim, mas alguns dos discípulos homens originais que não eram da Diáspora podem apontar que o problema começou com Paulo. Afinal, veja os problemas que ele levantou quando começou a aplicar o evangelho no contexto dos gentios do primeiro século. Ele quase dividiu a igreja do Novo Testamento.
"Mas", outro sugere, "é por isso que a experiência de Paulo está na Bíblia. Toda contextualização justificável deve cessar em Paulo. Afinal de contas, você não pode ir a extremos nesse negócio de aplicar a Bíblia aos novos tempos e lugares.”
E os argumentos podem continuar. E eles irão.
Concluindo, quero dizer novamente que o assunto do meu artigo não são as joias, o sexo, o trabalho ou a ordenação de mulheres.
Pelo contrário, é uma advertência para que examinemos todas as consequências do nosso método teológico para que não sejam maiores do que pretendíamos, é um apelo para sermos fiéis à nossa própria lógica e à totalidade dos textos selecionados para demonstrar o nosso ponto. Assim, joias e ordenação meramente fornecem ilustrações contemporâneas que fazem um alerta para o uso racional das Escrituras. Afinal, há uma grande diferença entre usar a Bíblia para provar um ponto e desenvolver um argumento bíblico sadio. Uma "visão elevada" da Bíblia exige uma hermenêutica sadia.



[1] Gordon J. Werham, The Book of Leviticus, The New International Commentary on the Old Testament, (Grand Rapids: Eerdmans. 1979), p. 237.
[2] Seventh-day Adventist Bible Commentary, Ellen G. White Comments (Washington, D.C.: Review and Herald Pub. Assn., 1957, 1980), vol. 7, pp. 295, 296.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 4



12) A discussão "dentro do templo x fora do templo"
A questão “Dentro x Fora do Templo” aparece no livro e nos artigos de Dorneles disponibilizados na net. O argumento é: "os hebreus até usavam tambores em momentos de adoração, mas fora do templo, por isso não devemos usá-los dentro das igrejas. Tambores não entraram no templo e não devem entrar na igreja!"

Creio que esse argumento merece ser analisado mais criticamente. Não adoramos no Templo e, incrivelmente, nem temos o Templo como nosso modelo de práticas de culto. Qualquer culto cristão, seja ele feito num prédio ou debaixo de uma árvore, é “fora do templo”. Casas cristãs de culto não são “templos judaicos”.

Nossas casas de culto, que chamamos de “igreja”, não são “o Templo de hoje”. E nossa liturgia tem pouco a ver com a liturgia do Templo (com exceção dos princípios).

Muitas coisas deixaram de entrar no serviço do Templo [crianças, mulheres, gentios] mas nem por isso sua ausência deve servir de "padrão" para hoje. Por que então se singulariza a suposta ausência dos tambores e se omite a confirmada ausência de outros elementos?

Qual o princípio por trás da ausência das crianças no serviço do Primeiro Templo, por exemplo? Aplicando-se o método de interpretação de Dorneles, deveríamos deixar as crianças fora da igreja, pois não entravam no templo.

Isso mostra que o raciocínio "se tambores não entraram no templo judaico, não devem entrar na igreja" é discutível, pois a estreita comparação "templo-igreja" é discutível. O que mais não entrava no templo judaico? Eu não poderia entrar, por ser mulher. E provavelmente você, leitor, também não, por ser gentio.

Uma vez, Paulo foi condenado pelos judeus sob a falsa acusação de ter levado um efésio chamado Trófimo para dentro do templo, além do espaço permitido aos gentios (At 21:28,29).

28 "- clamando: Varões israelitas, acudi; este é o homem que por toda parte ensina a todos contra o povo, contra a lei, e contra este lugar; e ainda, além disso, introduziu gregos no templo, e tem profanado este santo lugar.
29 - Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, e pensavam que Paulo o introduzira no templo."

Se Dorneles estivesse certo, o discurso dos judeus seria aplicável até hoje, e cenas como essa deveriam se repetir a cada sábado nos “templos”.

Outro problema é que a adoração bíblica não se restringia ao que acontecia no Templo. Apesar de ser o centro de adoração por excelência, o templo não representava toda a experiência de adoração do povo de Israel. O que se fazia no Templo tinha sua função, mas fora do Templo o povo adorava a Deus em cultos genuínos, com vários instrumentos e sob a aprovação divina.

Ellen White classifica como “culto” e “louvor” várias cenas de adoração fora do templo. Ela chama de “culto”, por exemplo, a música feita pelos profetas (ao ar livre) em 1 Sm 10:5 (Patriarcas e Profetas, 610).

E a ironia é: o transporte da arca, o evento que marcou a suposta "reforma musical", aconteceu ao ar livre! Assim, a discussão "dentro x fora do templo" perde muito o seu sentido.

Conclusão
O livro "Cristãos em busca do êxtase" é um excelente levantamento histórico do carismatismo e do pentecostalismo. Também faz uma ótima análise do papel da música nesse processo. No entanto, ao usar a Bíblia para analisar a música sacra, o autor apenas fez eco a argumentos usados contra a música contemporânea já fartamente refutados.

É hora de levarmos a discussão sobre música e adoração a um outro nível, mais alto, mais comprometido com a Bíblia. Grande parte das publicações sobre música começam afirmando que isso não é uma “questão de gosto”, que devemos saber a “vontade de Deus”. No entanto, após essa introdução bem-intencionada, os autores passam a expor suas opiniões pessoais costuradas com versos citados pela metade, descontextualizados, mal compreendidos e mal aplicados.

É incrível como a discussão sobre música parece ocorrer numa dimensão paralela, num universo onde a exegese é tosca, ilógica e a Bíblia é pisoteada. Ao adentrar nessa discussão, precisamos manter o mesmo nível, seguir as mesmas regras de interpretação bíblica que usamos em outros assuntos. Infelizmente, os artigos de Dorneles (um deles é parte de um capítulo de seu livro) não contribuíram para isso.

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 3


8) Dorneles usa o argumento “os salmistas ainda não tinha luz”
Para confirmar e esclarecer as teorias de seu livro, Dorneles lançou um artigo chamado "O canto do Senhor". Nele, ele escreve sobre o Salmo 150:

“quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Dorneles supõe que ao incentivar o uso de tambores, Davi ainda não tinha luz (conhecimento revelado) sobre o assunto. Dorneles não faz essa suposição baseado na Bíblia, mas num salmo apócrifo (veja próximo tópico).

Não cremos em inspiração verbal, mas acontece que essa proposta de Dorneles é semelhante à dos que adotam o método histórico-crítico de interpretação bíblica. Quer dizer que os compiladores dos Salmos não foram dirigidos pelo Espírito Santo, compilando para todas as gerações posteriores algo que apóia o que Deus supostamente já havia proibido? Os compiladores posteriores dos Salmos não repararam na letra dos Salmos “sem luz” que incentivam o uso da percussão?

Um outro autor, Gilberto Theiss, escreveu sobre o Salmo 150: “provavelmente, tenha sido escrito em um momento histórico da vida de Israel onde não havia ainda uma clara instrução divina acerca da forma apropriada para a adoração litúrgica”.

Isso é grave, pois uma afirmação desse porte está á beira de negar a inspiração plenária das Escrituras. Em quais partes dos Salmos ou da Bíblia como um todo poderíamos confiar, então? Não há nenhuma indicação bíblica de que o argumento da “falta de luz” seja verdadeiro. Há bastante instrução litúrgica na Torah. O autor do Salmo 150, bem como do 149, do 81, etc foram divinamente inspirados e não houve nenhuma correção posterior ou contradição do que eles escreveram sobre percussão.

Concordando com Dorneles, Gilberto Theiss, escreveu: “No tocante à adoração musical, o povo progressivamente foi abandonando os velhos costumes egípcios. Entre esses costumes que foram abandonados, destacamos as danças e o uso de tambores.”

A Escola dos Profetas (onde os alunos usavam percussão), os Salmos e textos bíblicos e rabínicos que falam claramente da percussão e da dança em celebrações religiosas refutam isso. Os hebreus usavam percussão e continuam usando. Os hebreus dançavam e os judeus modernos continuam dançando. Não precisamos distorcer textos e reescrever fatos históricos apenas para combatermos a dança. Existem outros argumentos para isso.

Além disso, o argumento da “falta de luz” também atinge as Escolas de Profetas. Deus criou uma instituição que ensinava música sacra com tambores. Talvez, o próprio Deus não tivesse luz sobre a música ideal ainda... Um pensamento absurdo.

O argumento da “falta de luz” gera um blackout...

9) Dorneles confundiu o Salmo 150 com o Salmo 151 (apócrifo)
Para dar força ao argumento da “falta de luz”, Dorneles comete uma gafe incrível no artigo “O canto do Senhor”. Para comprovar que o incentivo ao uso de tambores do Salmo 150 foi escrito antes da tal “reforma musical” de Davi, ele cita um comentário a respeito de um salmo que não existe na Bíblia!

Ele diz:
“Entre outras fontes de especialistas, a publicação The Septuagint Version (Zondervan: Grand Rapids, MI), diz que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”. Nesse caso, quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Antes de tudo, seria importante saber quais são essas “outras fontes de especialistas”. Suspeito que isso seja apenas um recurso retórico para dar um falso peso acadêmico à bobagem que vem logo depois: a citação do apócrifo Salmo 151, presente na Septuaginta, que nada tem a ver com o Salmo 150.

Dorneles usa a versão Septuaginta para afirmar que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”, mas a Septuaginta traz isso no Salmo 151 (nao-inspirado) e não no 150.

Para ler o Salmo 151 on-line:
Em grego: http://www.septuagint.org/LXX/Psalms/151
Em inglês: http://ecmarsh.com/lxx/Psalms/index.htm

O que tem a ver um Salmo com o outro? Nada. Um é apócrifo, o outro é inspirado. Um traz informações sobre a data de sua composição, o outro não. Claramente Dorneles não percebeu que estava analisando o salmo errado. Até agora não encontramos nenhum esclarecimento ou errata de sua parte. Enquanto isso, o equívoco se alastra pela internet.

(O site Advir retirou o texto do ar, e o site musicaeadoracao apenas suprimiu esse trecho, mas manteve a argumentação sem divulgar nota esclarecedora)

10) Dorneles coloca os salmistas em desobediência
“Naquele dia, foi que Davi encarregou, pela primeira vez, a Asafe e a seus irmãos de celebrarem com hinos ao Senhor” (1Cr 16:7).

Asafe, que participou do transporte da arca e assumiu a liderança da música após isso, escreveu: “Comecem o louvor, façam ressoar o tamborim, toquem a lira e a harpa melodiosa." (Sl 81:2)

Asafe, um grande mestre da música em Israel, desconhecia a tal “reforma musical” que supostamente teria proibido os tambores. E é difícil conciliar a argumentação de Dorneles com o título do Salmo 5: “Ao mestre de canto, para flautas. Salmo de Davi.”

O compositor deveria acrescentar ao título: “eu não tinha luz quando fiz isso”, já que o acompanhamento deveria ser com flautas. No mínimo, os compiladores deveriam ter tomado alguma providência.

11) Dorneles usa a falácia da “falsa analogia”
Ele compara o uso de instrumentos musicais a costumes inadequados, como o uso de bebida forte, a poligamia e a escravidão:

“Da mesma forma que a revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão, iluminou esses fatos que aos poucos foram sendo eliminados, a questão da música também deve ser objeto de estudo para compreensão e juízo acertados.”

A sutileza do erro aqui consiste em comparar coisas incomparáveis. Os costumes inadequados citados foram claramente corrigidos pelo Senhor. Através de claros preceitos e exemplos, vemos claramente Deus corrigindo as questões da bebida forte, da poligamia e da escravidão (essa, mais sutilmente). Para cada uma dessas práticas errôneas, temos um “Assim diz o Senhor” em sentido contrário.

Isso não acontece com a música como Dorneles acha que aconteceu: uma reforma musical divinamente instruída que baniu instrumentos da adoração e que seria aplicável ainda hoje. Dorneles compara correções claramente presentes na Bíblia com uma suposta correção imaginada.

Onde está essa "revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão" no caso da música?
No mínimo, deveria ficar biblicamente evidenciado que a ordem bíblica contrária aos tambores é tão clara e direta quanto a ordem bíblica contrária à bebida forte ou à poligamia. Do contrário, incorre-se aí na falácia da falsa analogia.

Continua...