terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Nota aos fãs de Bacchiocchi

Amigos,

Ao expor as fraquezas e falhas na obra “O cristão e a música rock”, não estou fazendo campanha anti-Bacchiocchi. Pelo contrário. Ele já me foi muito útil em estudos e debates sobre vários assuntos (aqui, por exemplo), e considero sua obra “Imortalidade ou ressurreição” excelente. Melhor, inclusive, que a do sábado.

Mas estou seguindo exatamente as orientações de Bacchiocchi. Criticado por discordar de Ellen White em alguns assuntos, ele respondeu:

“É isso que significa ser um adventista comprometido? Seriam os adventistas cristãos de mente fechada que aceitam cegamente os seus ensinamentos tradicionais sem nunca testar a sua solidez bíblica? Se isso fosse verdade, então aqueles que nos acusam de sermos uma seita não estariam longe da verdade.” http://www.biblicalperspectives.com/endtimeissues/eti_87.html

Se Bacchiocchi pode discordar de Ellen White, por que eu não poderia discordar de Bacchiocchi?
Como ele conseguiu essa aura de intocabilidade entre nós? Se num próximo artigo sobre música eu vos mostrar que ele está biblicamente equivocado, vão continuar a me acusar de estar “atacando a igreja”, “promovendo apostasia”, “denegrindo a imagem”, etc?

Calma, amigos. Bacchiocchi não é "a igreja". Ele não é mais nem menos que ninguém. Foi um grande teólogo, mas não confundam “doutrina” com “opinião de Bacchiocchi”. E se ele lançou um livro internacionalmente conhecido, não é por causa de um bloguezinho como o meu que sua imagem será arranhada.

Minhas “acusações” não são acusações: são fatos, informação pública, e eu aponto as fontes. Eu argumento, mostro, comprovo. Que mal tem isso? Bacchiocchi discordou a vida inteira de muita gente, inclusive de posições tradicionais da teologia adventista (não quero causar mais escândalos, então descubra por você mesmo). Como um grande questionador que foi, ele ficaria decepcionado com o comportamente de seus admiradores.

Quem se sentiu ofendido com isso, desculpe-me: falta mais “adventismo” nessa flacidez espiritual que você chama de religião. É uma situação semelhante aquela: avisam o marido que sua esposa o está traindo, e o marido-traído fica magoado com quem contou, não com a esposa que o traiu.

Encerro com Ellen White:

“É importante que, ao defender as doutrinas que consideramos artigos fundamentais da fé, nunca nos permitamos o emprego de argumentos que não sejam inteiramente retos. Eles podem fazer calar um adversário, mas não honram a verdade. Devemos apresentar argumentos legítimos, que não somente façam silenciar os oponentes mas que suportem a mais acurada e perscrutadora investigação" (Evangelismo, p.166).

Meditem nisso, e parem de seguir a trilha do bezerro.

Basta de choro. Voltemos às argumentações.

Garlock e a tricotomia-dualista na música

Você já ouviu (ou leu) que, na música, a melodia afeta o espírito, a harmonia afeta a mente, e o ritmo afeta o corpo? Eu já. Várias vezes. E fui atrás da fonte de tão maravilhosa informação. Encontrei algumas, mas a mais proeminente foi Frank Garlock (coincidentemente, perdoem-me os fãs dele, mais uma das fontes de Bacchiocchi).

Frank Garlock é um autor de livros e palestrante conhecido nos Estados Unidos por combater fervorosamente a música cristã contemporânea. Numa análise parcial de seus vídeos e do livro “Music in the balance” não encontramos nada novo. Ele repete conceitos que escritores como Bob Larson, David Noebel e o próprio Garlock já vinham insistentemente escrevendo desde os anos 60.
Mas em Garlock encontramos um conceito que tem se alastrado na música adventista: a tricotomia. [1]

O conceito tricotômico na música
Em seus livros, Garlock sustenta a idéia de que a natureza triúna da música (melodia, harmonia e ritmo) corresponde à natureza do homem (espírito, alma ou mente, e corpo). Para ele, nossa natureza básica é o corpo, que é afetada pela qualidade básica da música: o ritmo. A harmonia afeta a nossa mente. E a parte mais nobre da música, a melodia, afeta o nosso espírito. [2]

Essa analogia é usada para condenar certos tipos de músicas rítmicas, já que o ritmo alimentaria a natureza carnal. O problema é que não há apoio bíblico para essa analogia. Ela parece fazer sentido e soa bem “espiritual”, mas, como veremos, flerta com a heresia gnóstica e não tem nenhuma credencial bíblica.

Nós adventistas não cremos na tricotomia. A nossa visão bíblica sobre o homem é monista (ou holística, integral), na qual o ser humano é uma unidade indivisível. Mas, esquecendo-se disso, Bacchiocchi repete o conceito de Garlock assim:

“Em seu livro Music in the Balance, Frank Garlock e Kurt Woetzel apresentam um conceito que era novo para mim, mas que achei ser digno de consideração. Eles explicam graficamente que:

MELODIA responde ao ESPÍRITO
HARMONIA responde à MENTE
RITMO responde ao CORPO” [3]

Em seus livros, sermões e palestras em vídeo, Garlock usa a palavra “mente” e a palavra “alma” relacionadas à harmonia. Na sua analogia, alma e mente parecem representar a mesma coisa.[4] Certamente o significado de "espírito, mente/alma e corpo" para Garlock não é o mesmo sentido para Bacchiocchi. Pelo menos não deveria ser.

Bacchiocchi completa: “A característica que define a boa música é um equilíbrio entre seus três elementos básicos: melodia, harmonia e ritmo.”[5] Mas logo após defender esse “equilíbrio”, ele se contradiz colocando os elementos da tricotomia numa escala de prioridades, como veremos a seguir.

O dualismo na música
Simplificando, o dualismo é uma idéia pagã e antibíblica que vê a natureza humana como material e espiritual. O material é o corpo, temporário, essencialmente mau. O espiritual é a alma ou a mente, que é eterna e boa.[6]

Veja a escala de importância na visão tricotômica do ser humano de Garlock:

1. Espírito – a parte mais importante do homem.
2 – Alma/Mente – a próxima em importância
3. Corpo – o menos importante[7]

Isso é um flerte com o dualismo: o corpo é “menos” e o espírito é “mais”.
E Bacchiocchi vai atrás de Garlock nessa idéia: “a ordem das prioridades da vida cristã com o espiritual em primeiro lugar, o mental em segundo e o físico em terceiro, deveria ser refletida na própria música.(...) A ordem apropriada entre os aspectos espirituais, mentais e físicos de nossa vida cristã deveria refletir-se na música cristã.”[8]

Eu até entendo o que ele quer dizer, mas a sua justificativa é inacreditável:

“A parte da música à qual o espírito responde é a melodia. Isto é sugerido por Efésios 5:18-19, onde Paulo admoesta os crentes: “mas enchei-vos do Espírito, falando entre vós em salmos, hinos, e cânticos espirituais, cantando e salmodiando”.[9]

Não entendi. Esse texto não diz que a melodia é a parte da música que afeta o espírito. Talvez ele esteja sendo influenciado por Garlock, que prefere a tradução da King James, onde o grego ‘psallo’ é traduzido “fazendo melodias”. Mas a Bíblia relaciona 'psallo' à mente também (1 Co 14:15). E não há porque preferir a tradução “fazendo melodia” em Ef 5:19.

Sobre ‘psallo’ em Ef 5:19, o Comentário Bíblico Adventista diz: “'tocar um instrumento', 'cantar hinos'. Esta palavra pode, portanto, referir-se à música instrumental ou ao canto em geral. Como já se falou de “cânticos”, alguns pensam que psallo se refere ao primeiro; mas outros sustentam que no NT esta palavra significa apenas ‘cantar’.”

Além disso, o conceito é musicalmente falho: fazer melodia requer ritmo.

E ele continua:
“A parte da música à qual nossa mente responde é a harmonia. Isto acontece porque a harmonia é a parte intelectual da música. Praticamente qualquer pessoa pode produzir uma melodia, mas é necessário um extenso treinamento musical para escrever e compreender os vários acordes (partes). Uma harmonia que soe bem só pode ser arranjada por um músico treinado. A harmonia, como a palavra sugere, harmoniza a melodia e o ritmo.[10]

Aqui não há citação bíblica, mas em Garlock nós encontramos o texto de 2 Co 10:5 que também não diz que a harmonia é a parte de música que afeta a mente. São afirmações soltas, que surgem ‘ex-nihilo’, sem fundamentação bíblica alguma!

E aqui também há uma falha musical: existem ritmos complexos e melodias que requerem intenso treinamento musical, assim como existem harmonias simplórias. Existem pessoas que conseguem fazer harmonia mas não conseguem reproduzir um ditado rítmico intrincado. A coisa não é “preto-no-branco” como querem Garlock e Bacchiocchi.

E finalmente, o ritmo:
“A parte da música à qual o corpo responde é o ritmo. A palavra ritmo deriva da palavra grega reo, que quer dizer “fluir” ou “pulsar” (João 7:38). O ritmo é o pulso da música, que encontra uma correspondência analógica com o pulso cardíaco.”[11]

O nosso corpo responde a muitos outros elementos musicais. O próprio Bacchiocchi cita vários exemplos de uso da música em terapias, anestesia e tratamentos em geral. Certamente isso tudo não acontece só com ritmo, mas com a música como um todo.

E fechando o raciocínio, novamente aparece a escala de prioridades de Garlock: “O cristão com uma ordem e equilíbrio escriturísticos em sua vida enfatiza em primeiro lugar o espiritual (Mateus 6:33), o intelectual ou emocional em segundo (II Coríntios. 10:5) e por último o físico (Romanos 13:14).”[12]

Nós adventistas cremos numa visão holística (ou monista) do ser humano. Ensinamos uma reforma de saúde justamente por crermos que cuidar do corpo à luz da Palavra também é “buscar primeiro o reino de Deus” (Mt 6:33). O corpo físico, na teologia adventista, tem muita importância, pois o ser humano é uma unidade indivisível. Há aqui uma confusão de termos. Os aspectos espirituais tem sim precedência sobre os terrenos, temporais. Mas o nosso corpo não deve ser classificado nessa sub-categoria, “menos”, desprezível.

Se Bacchiocchi não queria defender o dualismo para combater o ritmo, ele foi, no mínimo, confuso. E para refutar Bacchiocchi, ninguém melhor que... ele mesmo.

Bacchiocchi contra Bacchiocchi
Como aconteceu no caso do Salmo 150 , aqui também existe um caso de “hermenêutica por conveniência”. Bacchiocchi apresentou essa visão tricotômica/dualista do ser humano em “O cristão e a música rock”, mas estranhamente ele não defende essa visão do ser humano em sua excelente obra “Imortalidade ou ressurreição”. Veja:

“Tanto o corpo quanto a alma, a carne e o espírito são uma unidade indivisível”[13]
“A ênfase bíblica é sobre a unidade do corpo, alma e espírito, cada um sendo parte de um organismo indivisível”.[14]
“... o ato de criação material deste mundo, inclusive a do corpo humano, é ‘muito bom’ (Gn 1:31). Não há dualismo nem contradição entre o material e o espiritual, o corpo e a alma, a carne e o espírito, porque fazem todos parte da boa criação de Deus”.[15]

Essa sim é a visão adventista. Bacchiocchi denuncia: “... o ponto de vista dualístico clássico tem fomentado o cultivo da alma à parte do corpo...”[16]. E descreve a dedicação primária à vida contemplativa (vida espiritual) e o desligamento da vida secular como algo contrário à perspectiva bíblica, um dos resultados do dualismo.[17]

Uau! Que mudança de opinião! Nem parece o mesmo escritor... em qual dos dois autores devemos acreditar? Se somos unidade indivisível, não faz sentido a teoria tricotômica/dualista, pois somos afetados igualmente.

Ao defender o conceito holístico-bíblico da natureza humana, Bacchiocchi nos desafia a “considerar positivamente tanto os aspectos físicos quanto espirituais da existência”, pois “a maneira como tratamos nosso corpo reflete a condição espiritual de nossas almas”, e “a poluição física é também uma poluição espiritual.”[18] Corretamente, ele diz que “um bom programa de educação física deve ser considerado tão importante quanto os programas acadêmicos e religioso”.[19]

Ellen White concorda com essa segunda visão de Bacchiocchi, ao defender o “desenvolvimento harmônico de todas as faculdades”[20], e ao descrever a educação como “desenvolvimento harmônico das faculdades físicas, intelectuais e espirituais”[21]. Isso claramente contradiz a ordem das prioridades cristãs de Bacchiocchi em sua obra sobre música: “espiritual em primeiro lugar, o mental em segundo e o físico em terceiro”. Na vida do cristão tudo está relacionado ao que chamamos de “espiritual”.[22]

O físico não é mau
Referindo-se ao corpo, Garlock diz que “o ritmo… alimenta a satisfação própria, a parte egoísta do homem”[23]. Além de ser uma afirmação solta, sem fundamentação, ela traz uma idéia dualista, mais influenciada pelo gnosticismo (o mal reside no físico) que pelo cristianismo bíblico.

E ao afirmar que o ritmo é o que causa respostas físicas, Garlock diz uma verdade parcial: outros aspectos da música também provocam reações físicas.

Além disso, a Bíblia não sugere que reações corporais sejam inerentemente erradas na adoração. De fato, a Bíblia relata positivamente as posturas, gestos e movimentos corporais da adoração hebraica (prostrar-se com o rosto em terra, ajoelhar-se, levantar as mãos, danças, etc). Obviamente há aqui questões culturais envolvidas.

Ao abordar ritmos que ele mesmo aprova, Garlock diz “não há nada errado com a música que tem um efeito físico...”, ao falar dos efeitos da marcha. Isso é um exemplo dessa argumentação inconsistente, incoerente, que afirma uma coisa aqui e então afirma o contrário algumas páginas depois.

Contrariando o seu mentor, Bacchiocchi afirma em “Imortalidade e ressurreição” que o “corpo físico não é mau”[24] e que “o Antigo Testamento não distingue entre os órgãos físicos e espirituais.”[25] Um mesmo autor, duas obras, dois pensamentos conflitantes.

O dualismo de Daniel Spencer
Esse argumento dualístico encontrou eco na igreja adventista em vários artigos e palestras. Ele está presente também na palestra sobre música da série “A Guerra dos sentidos”, de Daniel Spencer.

Spencer admite que usou Garlock como uma das fontes para as suas palestras (clique na imagem ao lado) e vai um passo além do raciocínio de Bacchiocchi e diz:

“Eu estou lhe apresentado aqui um critério: Nós somos espírito, mente e corpo; a música é melodia, harmonia e ritmo. A melodia é o que estimula nossa parte espiritual, ela deve dominar...”

“O ritmo deve ser suprimido, pq ‘Deus é espírito, e importa que os que O adoram, O adorem em espírito e verdade’; ou seja, tudo no lóbulo frontal, e não na carne, que combate contra o espírito”. Para ouvir, clique abaixo:


Essa é basicamente uma antiga heresia gnóstica dualista. Note que Spencer diz que somos espírito, mente e corpo, que Deus é espírito e é com essa ferramenta que devemos adorá-lO, e não na carne (corpo) - a qual “combate contra o espírito.”

Para os gnósticos e muitos filósofos gregos pagãos dualistas, o espírito é bom e vive aprisionado pelo corpo, que é mau. “No dualismo platônico, a matéria é a fonte e origem do mal”[26], diz o próprio Bacchiocchi. E completa: “A identificação do mal com a matéria tem levado a uma visão pessimista do corpo e da existência física. É lamentável que esse ponto de vista pessimista do corpo tenha influenciado tão fortemente o pensamento e prática cristãos”[27].

Ao fazer coro a Garlock e Bacchiocchi, e relacionar a carne pecaminosa ao corpo, Spencer está dizendo que o corpo deve ser suprimido, pois milita contra o mundo espiritual. Isso soa como cristianismo monástico, medieval.

Porém, na Bíblia, essa carne que milita contra o espírito não é o mesmo que corpo literal, matéria. A “natureza carnal” não é constituída de células em si, mas de tendências pecaminosas. A solução para o pecado não é uma vacina. O mundo físico não é mau, como diziam os gnósticos, pois Deus também o criou, criou tanto nosso espírito quanto nosso corpo e a ambos chamou de bons.

Em versos como esse, a Bíblia apresenta a “carne” como sinônimo de “natureza carnal”, pecaminosa, e não como sinônimo de corpo literal, parte física, como colocou Spencer.

Logo, essa tricotomia humana e divina mostra-se sem aplicação ao que ele quer expor. Ele pretende usar o critério escriturístico, mas o faz distorcendo as Escrituras para que se adequem aos seus critérios.

Utilizando o conceito tricotômico racionalmente
Garlock e Bacchiocchi ensinam que “a característica que define a boa música é um equilíbrio entre seus três elementos básicos: melodia, harmonia e ritmo.” Ou seja, se alguém fizer o solo de um hino a cappella, isso não resultará em “boa música” por faltar a harmonia. Aqui está o problema: a Bíblia diz que os levitas cantavam em “uníssono” (2 Cr 5:13)[28]. Resultado: na avaliação de Bacchiocchi, a música dos levitas não era “boa música” por ser desequilibrada. Um absurdo com o qual nem ele concordaria.

E há erros lógicos nesse conceito. Após dizer que a boa música é a que traz um equilíbrio entre melodia, harmonia e ritmo, Bacchiocchi parte para a acusação: “A música rock inverte esta ordem, fazendo do ritmo o elemento dominante, depois a harmonia e por último a melodia.” O erro está em: se são “equilibrados”, esses elementos estão em pé de igualdade e não existe “ordem” que possa ser invertida.

Ao descrever a dança de Davi no segundo transporte da Arca da Aliança, Ellen White diz que ele acompanhava "em sua alegria o ritmo do cântico" (Patriarcas e Profetas, p. 706). Assim, pelo critério triconômico, essa música rítmica provavelmente era desquilibrada, ruim, carnal. No entanto, Bacchiocchi ensina que isso aconteceu depois de uma suposta reforma musical divinamente inspirada que teria banido os tambores, a dança e modificado a música sacra! É contraditório.

A posição adventista

O ‘Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia’, no capítulo “A doutrina do homem”, após descrever o dualismo, alerta que “alguns dividem a natureza humana em três: corpo, alma e espírito. Para os nossos objetivos, ambas as posturas podem ser abrangidas pelo dualismo.”[29]

E logo após, o ‘Tratado de Teologia’ expõe a visão biblicamente correta: o monismo bíblico, o ser humano como uma unidade, onde “todas as expressões da vida interior dependem de toda a natureza humana”[30].

Dividir a natureza humana em “corpo, alma e espírito” e apresentar o corpo como a parte de “menos importância”, como faz Garlock, e parte a ser “suprimida” como faz Spencer é algo próximo demais do dualismo. Ninguém pode apresentar essas teorias ao nosso povo como se isso fosse “adventismo”, pois não é.

Conclusão
Garlock tem uma visão dualística/tricotômica do ser humano (espírito, alma/mente e corpo). Os adventistas não crêem nisso. Arbitrariamente, Garlock relaciona essa visão com 3 elementos da música (melodia, harmonia e ritmo) e ensina que devemos supervalorizar a melodia e desvalorizar o ritmo. Não há nada na Bíblia que apóie essa idéia.

Mas Bacchiocchi e outros (como Daniel Spencer) lançam mão da idéia de Garlock e a utilizam sem grandes alterações. E alguns adventistas não vêem problema algum e acham linda a teoria dualística/tricotômica de Garlock.

Faça a sua conclusão leitor.

Infelizmente, a discussão sobre música e adoração na igreja adventista ainda acontece na periferia intelectual e teológica. É uma discussão marginal na “terra-de-ninguém”, onde vale tudo: argumentação ilógica, teorias infundadas, heresias misturadas com verdades, citações de lunáticos e místicos em geral, etc. Me parece que só não vale uma coisa: usar as boas e conhecidas regras raciocínio e interpretação bíblica.


por Vanessa Meira e Vanedja Cândido Barbosa


________________________________________
[1] Frank Garlock e Kurt Woetzel, Music in the Balance, p. 57.
[2] Existem vários autores que fazem essa relação sem fundamento. Procurando a fonte de tal informação encontrei o educador musical Edgar Willems, que é citado por alguns desses autores. No entanto, há uma diferença no conceito de Willems: a melodia afetaria o aspecto emocional, não o espiritual. O conceito de Willems é:
Ritmo - vida fisiológica (viver)
Melodia - vida afetiva (sentir)
Harmonia - vida mental (pensar)
[3] Samuele Bacchiocchi, O cristão e a música rock, 150.
[4] Você pode assistir uma palestra com esses conceitos de Garlock on-line aqui: http://www.youtube.com/watch?v=hSGx95YsZEk .
[5] Samuele Bacchiocchi, Imortalidade ou ressurreição, p.10.
[6] Samuele Bacchiocchi, O cristão e a música rock, 129.
[7] Notas do seminário “Symphony of Life”, de Frank Garlock, disponível em http://bayareabaptistchurch.org/index.php?option=com_content&view=article&id=61&Itemid=118 e http://webspace.webring.com/people/ed/davidpwil/SOL3.html
[8] O cristão e a música rock, p. 151 e 152.
[9] Idem, p. 150.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] Idem, p. 151.
[13] Imortalidade ou ressurreição, p. 1, 21.
[14] Idem, p. 10.
[15] Ibid.
[16] Idem, p. 18.
[17] Idem, p. 18 e 19.
[18] Idem, p. 21.
[19] Idem, p. 22.
[20] Ellen White, Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes, p. 296.
[21] Ellen White, Educação, p. 13.
[22] A questão é mais profunda e não abordaremos tudo aqui. Mas bastaria, por exemplo, citar Ellen White dizendo que “com a mente servimos ao Senhor” (Temperança, p. 14) para refutar de forma diferente essa escala de prioridades de Garlock. Para uma interessante visão adventista da “espiritualidade”: http://espiritualidade.numci.org/a-nova-espiritualidade-e-espiritualidade-adventista/
[23] Music in the Balance, p. 33.
[24] O cristão e a música rock, p. 49.
[25] Idem, p. 28.
[26] Idem, p. 49.
[27] Idem, p. 49.
[28] http://www.musicaeadoracao.com.br/livros/tensao/2_cap2.htm
[29] Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, p. 239.
[30] Ibid.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

As fontes duvidosas de Bacchiocchi

O que torna uma pesquisa digna de ser citada? Certamente, a credibilidade de suas fontes deve ser um dos critérios. Uma pesquisa rápida sobre as fontes de "O cristão e a música rock" revela que como editor de livros, Bacchiocchi era um ótimo teólogo. Pode parecer perseguição de minha parte. Mas não aguento mais ler e ouvir as mesmas lorotas ditas com ar de respeitabilidade. Conheçam algumas das fontes de Bacchiocchi:

John Diamond
John Diamond é um semi-místico que inventou a “Cinesiologia Comportamental”. Ele defende o uso da acupuntura, terapia com cores, com árvores e com música. Ele acredita que o ser humano tem uma Energia Vital, que pode ser estimulada por tais terapias e que levaria à cura. Você pode ver as terapias místicas de John Diamond em seu site:
http://www.drjohndiamond.com/the-diamond-path-of-life
http://www.drjohndiamond.com/the-works-of-john-diamond-md

Bacchiocchi cita a “Cinesiologia Comportamental” entre os “vários estudos científicos (que) estabeleceram os efeitos negativos da música rock sobre a mente”. (p.140)

O dr. Helio Luiz Grellmann, adventista, em “Cristianismo e terapias alternativas – fisiologia e misticismo” também cita a "Cinesiologia Comportamental" de John Diamond como uma dessas terapias alternativas que os adventistas devem evitar por causa do seu caráter místico (p. 164).
Esse material do dr. Grellmann está disponível em: http://images.melker.multiply.multiplycontent.com/attachment/0/RsBktQoKCnQAAAvXuC81/Cristianismo%20e%20Terapias%20Alternativas.pdf?key=melker:journal:25&nmid=53585980
e
http://www.4shared.com/office/xIQWoK-7/Cristianismo_e_Terapias_Altern.html

A terapia de Diamond e suas ligações com o misticismo oriental também são expostas em “John Ankerberg, Dr. John Weldon, The Encyclopedia of New Age Beliefs ( Harvest House, 1997), p. 399-407.

Bacchiocchi cita euforicamente o livro de Diamond “Your Body Doesn’t Lie”. O título original desse livro era BK: Behavioral Kinesiology. Chega a ser constrangedor imaginar o dr. Bacchiocchi e seus seguidores levando a sério e recomendando uma pseudociência baseada em ocultismo.

Interessantemente, Rebecca Brown, uma ex-satanista que faz sucesso entre os crentes, denuncia a "Cinesiologia Comportamental" como uma prática ocultista, uma das artimanhas satânicas para esse tempo (Vaso para Honra, p. 150). Brown não é uma fonte confiável para mentes sãs. Mas quem acredita em Bob Larson não tem motivos para duvidar de Rebecca Brown...

E o mais curioso vem agora: apesar de combater o rock, Diamond inventou uma terapia com tambores! Isso está em seu livro também “científico” “The Way of the pulse – drumming with Spirit”. O mesmo autor que combateu o rock defende os tambores. Por essa Bacchiocchi não esperava...

Além de Diamond, Bacchiocchi cita outro adepto do ramo místico da cinesiologia aplicada: as pesquisas de Sheldon Deal, “um quiroprático e escritor e que não é, de forma alguma, um velho retrógrado que tenta desmoralizar todo o Rock and Roll em si” (p. 136). As ligações de Sheldon com práticas e filosofias orientais também podem ser facilmente verificadas.

Cinesiologia Aplicada é considerada pseudo-ciência por alguns críticos por causa de suas associações com filosofias e práticas místicas. Você pode ler uma crítica científica á cinesiologia aplicada clicando aqui.

Após ler “O cristão e a música rock”, um leitor desavisado poderia se envolver tranquilamente com essas terapias místicas por causa da seriedade com que Bacchiocchi as recomenda. Para combater a música contemporânea vale tudo: citar um mentiroso caçador de demônios, fundamentalistas histéricos, pseudo-cientistas e místicos. O livro de Bacchiocchi é um amontoado de opiniões concordantes, sem nenhum filtro crítico.

Daniel Skubik
Bacchiocchi cita uma pesquisa com essas palavras: “Os neurocientistas Daniel e Bernadette Skubik fornecem uma explicação resumida de como a batida do rock afeta os músculos, a mente e os níveis hormonais.” (p. 135)

“Em um estudo importante sobre a Neurofisiologia do Rock, os pesquisadores Daniel e Bernadette Skubik enfatizam com impressionante clareza (para cientistas!) o impacto musical da batida do rock.” (p. 133)

Acontece que Daniel Skubik não é neurocientista. Ele tem formação na área de ciências políticas, filosofia e leis. Portanto escreveu sobre algo que está fora de sua área. E esse “estudo importante” nem aparece no seu curriculum, disponível no link: http://www.calbaptist.edu/dskubik/IBpaper.pdf , que também pode ser visto online no site da universidade batista onde ele leciona.

Que profissional não publicaria um "estudo importante" em seu currículum? Infelizmente, essa informação se alastrou pela internet, e até mesmo o erudito Wolfgang Stefani embarcou nessa. Teremos que engolir esse "estudo importante" feito por "neurocientistas" por muito tempo...

David Noebel
Bacchiocchi apresenta Noebel como “um pesquisador médico” (p. 248). As informações biográficas sobre Noebel o apresentam como tendo um Bacharelado em Artes (Hope College em Holland, Michigan) e um Mestrado em Artes (University of Tulsa), na área de Humanas e não em Ciências Médicas. Além disso, ele é descrito como candidato a Ph.D. em filosofia na University of Wisconsin.

Noebel foi um dos primeiros a denunciar o rock como uma arma comunista, argumento que se tronou popular na década de 70, encontrando espaço até mesmo na Revista Adventista (outubro de 79).

Ele acusava os soviéticos de usarem "uma elaborada técnica científica destinada a tornar uma geração de jovens americanos neuróticos através da obstrução nervosa, deterioração e retardamento mental". Olhando o comportamento da atual geração, talvez eu concorde com Noebel na parte do “retardamento”, mas a sua teoria da conspiração é exagerada. Para uma crítica à cruzada anti-rock de Noebel: http://www.wfmu.org/LCD/18/antirock.html.

Outras citações curiosas de Bacchiocchi
Jacob Aranza – Um dos principais divulgadores da paranóia das mensagens subliminares ao contrário (backward masking). Autor de "Backward Masking Unmasked" (1982) and "More Backward Masking Unmasked" (1985).

Ele denuncia o rock como parte de um plano Satânico. Sua fonte: um amigo seu, evangelista anônimo, que se sentou ao lado de um gerente de uma grande gravadora de rock igualmente sem nome em um avião. No decorrer de uma conversa casual, o gerente lhe contou todo esse plano satânico.

O curioso é que Aranza aprova o rock cristão. Para ele, o rock cristão poderia ser útil para salvar a juventude da religião satânica do rock’n roll.

Jeff Godwin – Um fundamentalista, ultra-conservador. Ele faz acusações infundadas e chega a conclusões contundentes a partir de frágeis evidências. Vê o demônio em tudo e em todos. Nem mesmo seus companheiros de luta anti-rock, como Bob Larson, escaparam da acusação de serem satanistas disfarçados. Ele é o lunático do movimento anti-rock.

Deus teria revelado para ele que algumas bandas populares são compostas por demônios encarnados. Ele é ardente defensor da teoria do “ritmo vudu” que supostamente deu origem ao rock. Segundo ele, o ritmo do rock tem o mesmo tempo da batida do coração humano (como se “rock” fosse um único ritmo, com um único andamento...). Para ele, isso hipnotisa e faz lavagem cerebral nos ouvintes para aceitarem a mensagem de Satã.

Naturalmente, Godwin também acredita em mensagens subliminares ao contrário (backward masking). Ele explica detalhadamente como as estrelas do rock invocam os demônios em sessões de gravação para garantir sucesso na venda de discos.

Conclusão
Eu não fiz uma pesquisa exaustiva. Muitas outras celebridades do submundo místico-pseudo-intelectual da música sacra podem estar no livro de Bacchiocchi. Minhas fontes aqui também podem ser questionadas, mas eu não sou uma profissional tentando influenciar a comunidade adventista. Não estou escrevendo um livro-pesquisa e nem tenho a influência que tinha o dr. Bacchiocchi.

A minha dúvida é: como eu, que não sou profissional da música sacra, nem da editoração de livros, nem da teologia, fui capaz de perceber tanta besteira num único livro e muitos profissionais não foram? Como pode “O cristão e a música rock” ter ocupado páginas de nossas publicações e até nossos púlpitos em forma de palestras e sermões?

Por que acreditamos em Bob Larson?

Bob Larson é uma autoridade em música sacra. Pelo menos alguns adventistas acham que é. Seu nome aparece em centenas de artigos sobre música sacra. Na Revista Adventista, ele foi presença constante na década de 70. Veja como a famosa e respeitada obra de Samuele Bacchiocchi "O cristão e a música rock" descreve Bob Larson:

“O ex-astro de rock Bob Larson explica” (p. 101 e 119)
“Bob Larson, cuja carreira como um músico popular de rock lhe deu uma experiência de primeira mão do cenário do rock” (p. 131)
“Bob Larson, que antes da sua conversão era um músico de rock de sucesso em shows de televisão e que tocou para platéias repletas no Convention Hall, na cidade de Atlanta” (p. 133)

Em seu livro “Hell on Earth” , publicado em 1974 ele afirma que alcançou o sucesso já aos treze anos:

Aí diz que Bob Larson alcançou a fama com a idade de "treze anos quando sua primeira canção de sucesso foi publicada. Tinha a sua própria banda de rock’n roll aos quinze anos, e se apresentou no rádio e na televisão nos próximos anos até que sua carreira o levou ao Convention Hall em Atlantic City.” (Bob Larson, Hell on Earth (Carol Stream, IL: Creation House, 1974), biografia do autor no prefácio.)

O fato é: Bob Larson NUNCA foi um astro do rock.

Sharla Turman Logan, a tecladista de “The Rebels” (a ex-banda de Bob Larson) afirmou em entrevista que conheceu Bob aos treze, mas "nunca ouviu nenhuma música de sucesso”. Era uma desconhecida banda de adolescentes, não uma banda de heavy metal. (Jon Trott, "Bob Larson's Ministry Comes Under Scrutiny," Cornerstone, Vol. 21, Fevereiro de 1993, p. 18)

E sobre o fato deles terem tocado no Convention Hall em Atlantic City, a história não é como Larson conta. Eles tocaram apenas uma paródia de “Charlie Brown” numa convenção do Lions' Club. O pai do baterista era um administrador da organização e ele marcou a apresentação (Jay Grelen and Doug LeBlanc, "This is Me, This is Real," World, Vol. 7, No. 32, 23 Jan. 1993, p. 11.)

Sharla conta que eles tocavam apenas em eventos pequenos, em feiras e igrejas, acompanhados pelos pais, e que as alegadas experiências demoníacas durante os shows nunca aconteceram e nem era possível que acontecesse, dada a natureza dos shows e o estilo da banda.

No entanto, apesar de ser um completo desconhecido no cenário musical, Bob Larson refere-se a si mesmo como um grande compositor, elogiado por grandes executivos da música:

Além disso, sem modéstia alguma, ele se descreve como um dos melhores "guitarristas de gravação" (enviem-me essas gravações se você puder encontrá-las):

Ex-astro”, “músico de rock de sucesso”, “carreira”. Como Bacchiocchi caiu nessa? Eu procurei em todos os arquivos disponíveis, nas listas da Bilboard, e nunca encontrei nenhum “sucesso” de Bob Larson como compositor, ou de sua banda “The Rebels” (não confundir com uma banda de mesmo nome que, de fato, fez algum sucesso). Se alguém encontrar algo, por favor me envie.

Você pode ler mais sobre as mentiras e exageros de Larson em toda a internet, mas comece por aqui: Matéria da World Magazine e da Cornestone.

Bacchiocchi também diz que Bob Larson “estudou medicina antes de se tornar um músico popular de rock”(p. 140). Vamos aos fatos:

O próprio Larson diz que aos treze ele já era um sucesso. Como pode ter estudado medicina antes dos treze? As contas não fecham.

Em 5 de Janeiro de 1993 Larson disse publicamente que quando ele entrou no ministério, ele estava “a apenas alguns créditos” de receber a licenciatura em química,e em seguida ir para a escola de medicina (Bob Larson, "Talk-Back With Bob Larson", arquivo de programa de rádio, 5 de janeiro de 1993).

No entanto, Bob nasceu em 1944, se formou no ensino médio em 1962, frequentou o McCook Junior College durante um ano, transferiu-se para a Universidade de Nebraska, e a abandonou em setembro de 1964. (Jay Grelen and Doug LeBlanc, "This is Me, This is Real," World, Vol. 7, No. 32, 23 de Janeiro de 1993, p. 11)

Ou seja, ele teve apenas dois anos para estudar o que disse que estudou.


Bob Larson é, provavelmente, a fonte mais esquisita (e mentirosa) de Bacchiocchi. É incrível como a comunidade adventista dá crédito a um charlatão insano como Larson. É improvável que o dr. Bacchiocchi desconhecesse as controvérsias e escândalos em torno de Bob Larson. Mesmo assim, ele preferiu levar em conta os argumentos e as "pesquisas" de um maluco caçador de demônios.

A ironia é que Bob Larson mudou de opinião sobre o uso do rock na adoração e no evangelismo, mas Bacchiocchi e aqueles que o citam nunca mencionam tal mudança. Recentemente, Larson abriu uma escola de exorcismo, que tem atraído até adolescentes.
Ele também disponibiliza um teste online para saber se você está com o demônio no corpo. Chama-se DemonTest, e pode ser acessado aqui: http://www.demontest.com/ .

Qual é a credibilidade de uma pesquisa que cita Bob Larson como fonte séria? Até quando vamos ter o desprazer de ver o nome de Larson notas de rodapé de pesquisas e artigos que pretendem orientar o povo de Deus?

Para fechar com chave de ouro, aí está o acadêmico Bob Larson em ação:



terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Salmo 150 e a linguagem figurada



Para fugir das claríssimas afirmações do Salmo 150 quanto ao uso de instrumentos musicais na adoração, tornou-se popular o argumento de que esse salmo é altamente figurativo, e não deve ser levado em conta literalmente.

Como explica Bacchiocchi:
“Por exemplo, não há nenhuma maneira no qual o povo de Deus, na terra, possa louvar o Senhor “no firmamento, obra do seu poder”. O propósito do salmo não é especificar o local e os instrumentos a serem usados para o louvor durante o culto divino, mas sim convidar a tudo o que respira ou emite som a louvar o Senhor em qualquer lugar. O salmista está descrevendo com linguagem altamente figurativa a atitude de louvor que deveria caracterizar o crente a toda hora e em todos os lugares. Interpretar este salmo como uma licença para dançar, ou tocar tambores na igreja, é interpretar de forma errada sua intenção.” (O cristão e a música rock, p. 33)

Os salmos não contém apenas figuras de linguagem.
Apesar de serem altamente figurativos, os salmos apresentam muitas expressões literais, descrições de acontecimentos históricos, referências literais a lugares, pessoas e objetos. Ao contrário do que sugere o argumento de Bacchiocchi, não há nos Salmos um “8 ou 80” com relação às figuras de linguagem. A poesia é uma mistura de expressões figurativas e literais e não um acumulado de sentenças exclusivamente figurativas.

Figura de linguagem é simplesmente uma palavra ou frase usada fora de seu emprego ou sentido original. A figura de linguagem normalmente aparece numa sentença que não faz sentido quando tomada literalmente. Mesmo um leitor com pouco ou nenhum treinamento em literatura poderia dizer quais são os elementos figurativos e os elementos literais numa poesia.

A frase “Essa menina é uma boneca!” é figurativa. Mas a menina é literal, ela existe. O Salmo 1 usa linguagem figurada quando diz que os ímpios “são como a moinha que o vento espalha”(v.4), mas é literal quando adverte que “os ímpios não subsistirão no juízo” (v.5).

Isso demonstra como figuras de linguagem não são o mundo do “faz-de-conta” que Bacchiocchi descreve. Nos Salmos nem tudo é figurativo, existem elementos literais entre as várias figuras de linguagem e tipos de paralelismo.

Por isso, dizer que “a linguagem figurativa desse salmo não permite uma interpretação literal” é um erro grotesco. E esse erro assume proporções gigantescas quando vem de um teólogo tão experiente como era o dr. Samuele Bacchiocchi.

“Adufe” estaria simbolizando o que?
Há um princípio básico de hermenêutica segundo o qual as palavras devem ser entendidas em seu sentido literal, a não ser que tal interpretação leve a uma contradição ou a um absurdo.(Louis Berkhof, Princípios de interpretação bíblica, p. 87-96)

O significado original do texto é distorcido “quando se interpreta figurativamente uma declaração literal e quando se interpreta literalmente uma declaração figurativa.” (Henry A. Virkler, Hermenêutica Avançada, p. 19.)

Assim, aplicando esse princípio básico no Salmo 150, fica claro que a expressão: “Louvai-o com adufes” não precisa ser entendida como uma figura de linguagem. Ela faz sentido literalmente, pois os hebreus usavam adufes na adoração. Essa é a leitura mais natural do texto.

Aqueles que entendem os “adufes” do Salmo 150 como uma figura de linguagem devem dizer que figura de linguagem é essa. Símile? Metáfora? Alegoria? Além disso, os adeptos da interpretação figurativa dos adufes devem explicar em linguagem literal o que o texto supostamente estaria sugerindo de maneira figurada. O que significa “louvai com adufes”?

Incrivelmente, a resposta para esses “hermeneutas” geralmente é: “Louvai com adufes significa: NÃO usem percussão!”

Que figura de linguagem é essa onde o sentido literal é o oposto do sentido figurado? Ironia? Estariam esses intérpretes sugerindo que o Salmo 150 é um salmo irônico, sarcástico?

Figura de linguagem inadequada?
Ainda que “louvai-o com adufes” fosse figurativo, na ótica de Bacchiocchi essa seria uma figura de linguagem inadequada, pois para ele os adufes não podem ser usados na adoração. Isso nos leva a um fato curioso: o Espírito Santo inspirou o salmista e o levou a usar um elemento pecaminoso como figura de linguagem!

É como se o salmista tivesse escrito ao Senhor que “o teu amor é melhor que um pernil suíno!”, ou “minha alma suspira por ti mais do que o viciado anseia pela cocaína”. Um absurdo, ainda que fosse meramente simbólico.

Como o próprio Bacchiocchi destaca, os salmos usam expressões claramente figurativas, ordenando o louvor “no leito”, “portando espadas”, ou “no firmamento”, mas nenhuma dessas expressões é pecaminosa ou errada, como supostamente seria o “louvai-o com adufes” caso Bacchiocchi estivesse certo. Essa teoria pode ser resumida assim: no Salmo 150 Deus usa figuras de linguagem que fazem apologia ao pecado e que significam exatamente o contrário do que Ele queria dizer.

Devemos “tomar cuidado para não colocar demais exegese nos Salmos, a ponto de achar significados especiais em toda palavra ou frase, onde o poeta talvez não tenha objetivado nenhum.” (Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica, p. 177)

Bacchiocchi e sua hermenêutica por conveniência
Para vermos a incoerência metodológica de Bacchiocchi, basta compararmos a pesquisa que ele fez sobre a música com as pesquisas que ele fez sobre outros assuntos. Os métodos e abordagens são diferentes.
Apesar de defender essa leitura figurativa dos Salmos 149 e 150 em “O cristão e a música rock”, em seu livro “Imortalidade ou ressurreição?” (Unaspress, 2007), Bacchiocchi consegue separar claramente o que é figurativo e o que é literal nos salmos (e ele cita muitos salmos).

Por exemplo, quando o Salmo 6:5 diz que na morte não há lembrança do Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. Quando o Salmo 115:17 diz que os mortos não louvam ao Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. O fato dos salmos terem sido escritos em linguagem poética não impede interpretações literais de trechos que são claramente literais.

Ao pesquisar sobre a morte, Bacchiocchi consegue distinguir o que é figurativo e o que é literal nos salmos. Aparentemente, ele só não consegue fazer isso quando a discussão é sobre música: nesse caso, tudo é figurativo!

Outro exemplo da “hermenêutica por conveniência” de Bacchiocchi está no fato de ele desrespeitar uma regra básica que ele mesmo destaca em “Imortalidade ou ressurreição?”:

“Para encontrar respostas a essas indagações, tomaremos as Escrituras a fim de examinar todas as passagens pertinentes. (...) Deve-se sempre permitir às Escrituras interpretarem as Escrituras. Passagens que apresentam certos problemas devem ser interpretadas à luz daquelas que são claras. Seguindo tal princípio, conhecido como analogia da fé, podemos resolver as aparentes contradições que encontramos na Bíblia.” (p. 114)

Bacchiocchi ignorou a regra “texto claro interpreta texto obscuro” - Ele dá preferência a uma lista de instrumentos para inferir, imaginar, uma suposta proibição divina à flauta e aos tambores. Ele usa essa inferência para reinterpretar textos claros como os salmos 149 e 150. É uma incrível desobediência à regra hermenêutica.

Bacchiocchi desrespeita a regra “a Bíblia interpreta a Bíblia” – Ao afirmar que as flautas e os tambores ficaram de fora do templo por estarem "associados ao culto pagão”, ele não encontra nenhum apoio bíblico. A Bíblia não afirma isso em lugar algum, e os salmos continuam incentivando claramente o uso de flautas e tambores.

Bacchiocchi não leva em consideração “todas as passagens pertinentes” - A Bíblia tem outras passagens sobre o “estar associado ao paganismo” que foram sumariamente ignoradas em sua pesquisa, como:
- Pagãos usavam, dentre outros instrumentos, harpas e alaúdes (Is 14:11; Ez 26:13; Dn 3:5; Jó 21:12;)
- Incrédulos e bêbados infiéis usavam harpas, dentre outros instrumentos (Is 5:12)
- Prostitutas usavam harpas (Is 23:16)
- Um descendente de Caim é chamado de “pai dos que tocam harpa e flauta” (Gn 4:21).
- A maldição divina sobre a Babilônia mística do Apocalipse inclui menções à harpa, à flauta e aos clarins (Ap 18:22)
Esses instrumentos estão associados ao paganismo mas fazem parte da lista de “instrumentos do Senhor”. Isso torna insustentável a argumentação de Bacchiocchi.

E a dança?
Sempre que se discute o uso de instrumentos musicais no Salmo 150 surge a pergunta: “E a dança? Você está defendendo o uso da dança também?” Não. Eu estou defendendo o uso correto da Palavra de Deus.

Eu nunca entendi a preocupação com a dança. Não temos medo do véu (uma ordem bíblica para as mulheres), mas temos medo da dança. Não temos problema nenhum com as leis bíblicas sobre barba e cabelo, mas trememos diante da dança.

Alguns temem tanto que sugerem que a palavra “dança” não é dança, é “órgão”, ou outro instrumento musical desconhecido. Pode até ser, mas o peso da evidência está a favor da palavra “dança”: é uma tradução linguisticamente correta, e os hebreus dançavam em celebrações religiosas.

Se os adventistas não acham adequadas as manifestações físicas, podem argumentar de maneira diferente, usando a lógica, respeitando as regras de interpretação e sem alterar o texto bíblico. Fazemos isso facilmente com outros assuntos, podemos continuar fazendo no assunto da dança. Só não podemos seguir o “método Bacchiocchi” de fazer exegese com dois pesos e duas medidas.

Conclusão
Vimos quão frágil é o argumento da “linguagem figurada”. Eu não sei o que levou um teólogo tão celebrado a publicar uma obra com argumentos tão fracos como esse. Não sei o que concluir nesse ponto...