terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca de êxtase" e a música


O livro "Cristãos em busca de êxtase" (Unaspress) é uma excelente pesquisa histórica e contém informação preciosa nesses dias de explosão neo-pentecostal. No entanto, na parte bíblica do livro há uma argumentação que destoa do bom nível da pesquisa. A análise bíblica que o autor faz da música sacra contém falhas, especialmente ao usar o episódio do transporte da arca como uma revelação normativa para a música cristã. Trechos do livro estão disponíveis na net em forma de artigos e o leitor pode encontrá-los facilmente.

Resumindo a idéia de Dorneles: quando Davi transportou a arca ao som de tambores, tudo deu errado, e Uzá morreu. Quando Davi excluiu os tambores, tudo deu certo. E, segundo ele, após esse episódio, o tambor foi excluído do templo.

Ele escreveu que “o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.” E acrescentou que “a exclusão do tambor no templo pode indicar também que esse instrumento (...) deveria estar fora do culto”.

Ele sugere que Deus orientou não ter tambores, ou seja, Deus orientou a “exclusão do tambor” e que por causa dessa orientação divina, tambores deveriam “estar fora do culto” e “sem recomendação”. Apesar de não afirmar claramente que “Deus proibiu os tambores”, há uma “proibição” implícita nos argumentos de Dorneles.

A seguir, algumas observações sobre a argumentação dele.

1) Dorneles coloca erradamente a culpa nos tambores
Fazendo essa contraposição entre “com tambores deu errado” e “sem tambores deu certo”, Dorneles leva os leitores a concluírem exatamente isso: a culpa foi dos tambores. Se ele não teve essa intenção, toda a sua argumentação foi inútil para qualquer outro propósito, visto que ele destaca apenas os tambores e ignora outros elementos da narrativa.

O equívoco de Dorneles aqui é básico: nem a Bíblia nem Ellen White sugerem que o problema do primeiro transporte teve algo a ver com tambores. O problema foi a “violação de um mandado explícito”, foi desobedecer às claras instruções divinas quanto ao transporte da arca (Êx.25:14, Nm.4:15, 7:9 e 10:21).

Nem a Bíblia e nem Ellen White tocam na questão da música ou do uso de instrumentos musicais como sendo a causa da morte de Uzá. Segundo White, “houve uma desatenção direta e indesculpável às determinações do Senhor.” Nada sobre a questão musical.

Ela acrescenta que “o Senhor não podia aceitar o serviço, porque não era efetuado de acordo com Suas orientações”, mas novamente não cita a música. Ela não inclui a música entre a “declaração compreensível da vontade de Deus em todas estas questões” cuja negligência “desonrava a Deus”. E, finalmente, Ellen White afirma que Davi foi “levado a compenetrar-se, como nunca dantes, da santidade da lei de Deus, e da necessidade de obediência estrita”(Patriarcas e Profetas, 705 e 706). De novo, nada sobre a música.

Ao extrair homileticamente uma "lição musical" desse episódio (que é possível), parece que Dorneles viu algo que a Bíblia não mostrou, e que Ellen White também não viu. É um equívoco usar o transporte da arca para reprovar o uso de certos instrumentos musicais, pois a Bíblia simplesmente não diz isso.

2) A argumentação de Dorneles serve para condenar a flauta também.
Curiosamente, podemos substituir “tambor” por “flauta” em quase toda argumentação de Dorneles sem prejuízo para a sua linha de raciocínio e sem ferir os textos bíblicos usados. Veja:

“Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com flautas (1Cr 13:8 e 2Sm 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado.
“Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve flautas, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Cr 15:16). O transporte deu certo.”

E então? A culpa é dos tambores ou das flautas? E ainda há outros parágrafos:

“A lista dos ‘instrumentos do Senhor’ aparece em diversas ocasiões, sempre sem inclusão das flautas (ver 1Crônicas 25:1 e 6, 16:5, 2Crônicas 5:12 e 13).”
“A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de flautas, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8).”
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com flautas (ver Isaías 5:12).”

E a conclusão parafraseada também seria: “o textos de Isaías 5:12 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

Os flautistas precisam ser alertados disso, urgentemente! Mas estranhamente, parece que Dorneles ainda não escreveu nada contra as flautas.

3) A argumentação de Dorneles é favorável à dança
Dorneles divide o transporte da arca em 2 tentativas, destacando dois pontos:
1) a primeira teve dança e tambor, e deu errado.
2) a segunda não teve tambor, e deu certo.

Nas palavras do autor:
"Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com tamboris e Davi dançou e se alegrou, ao ritmo da banda (1Crônicas 13:8 e 2Samuel 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado."

Mas de acordo com 2 Sm 6:14, Davi dançou na segunda parte do transporte (da casa de Obede-Edom até Jerusalém). Isso compromete o raciocínio do autor. Se na segunda parte a viagem foi abençoada por Deus, então isso coloca a dança de Davi sob a iluminação divina, pois o transporte deu certo.

Dorneles escreveu: "Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Desta vez, ele orientou que ninguém conduziria a arca, senão os levitas (1Samuel 15:2). Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve tambor, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Crônicas 15:16). O transporte deu certo."

Não teve tambor, mas teve dança. Se o autor vincula o "dar certo" com a ausência de tambores, alguém poderia usar o mesmo argumento e vinculá-lo à presença da dança. Logo, o mesmo argumento que bane o tambor, consegue mais do que pretendia e acaba sacralizando a dança.

Algumas versões da Bíblia não registram “dança” durante o trajeto em que Uzá morreu (de Quireate-Jearim até Obede-Edom) mas usam o verbo “alegrar-se”. Questionado sobre isso, Dorneles responde que o verbo usado na primeira tentativa, em 2 Sm 6:5 (sachaq), pode ser traduzido como “dançar”. Para ele, na primeira tentativa houve tambores e dança (sachaq), e o transporte deu errado.

Mas isso só gera mais problemas para a teoria de Dorneles. Ao ser repreendido por Mical, Davi responde dizendo que faria de novo (2 Sm 6:21), e ele usa a mesma palavra de 2 Sm 6:5 e 1 Cr 13:8 (sachaq).

Resumindo: usando a tradução preferida de Dorneles, Davi “dançou” (sachaq) na primeira tentativa, “dançou” na segunda, e ainda afirmou que “dançaria” (sachaq) de novo:

“Pois eu continuarei a dançar em louvor ao SENHOR”. (2 Sm 6:21) NTLH
“foi perante Senhor que dancei; e perante ele ainda hei de dançar". Almeida Atualizada
yo danzaré ante Yahveh”. Bíblia de Jerusalém (1976)
“therefore I will play, and dance before the Lord.” Septuaginta.

Se nesse episódio houve de fato um “reforma musical” promovida por Davi, parece que o próprio Davi não entendeu direito. Ou então, a ordem de Deus teria sido: “tirem os tambores e comecem a dançar!” De qualquer forma, a argumentação de Dorneles não faz sentido.

Dorneles afirma que “a questão que procurei mostrar no meu texto é a mudança da música do primeiro para o segundo transporte. Essa mudança certamente foi resultado o mandato de Deus a Davi (...)”.

Então, a mudança não foi tanto musical, pois além de Davi dançar e afirmar que continuaria dançando, Ellen White descreve assim o segundo trajeto:

“Outra vez pôs-se em movimento o longo séquito, e a música de harpas e cornetas, trombetas e címbalos, ressoava em direção ao céu, misturada com a melodia de muitas vozes. "E Davi saltava. ... diante do Senhor" (II Sam. 6:14), acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico.”

A dança de Davi acompanhava o ritmo. Era “música e dança, em jubiloso louvor a Deus”. Quando artculistas dizem a música do segundo trajeto foi "branda", "suave", "menos ritmada", trata-se de especulação, imaginação e inferência. O fato é que Davi dançou acompanhando o ritmo da música e depois ainda afirmou que continuaria dançando. Isso coloca uma interrogação na teoria da suposta “reforma musical que excluiu os tambores”.

4) A descrição de Dorneles é diferente da descrição de Ellen White
Ellen White não descreve o primeiro transporte da arca em tons negativos como Dorneles o faz. Inclusive quando fala da música.

Sobre a música do segundo transporte da arca, Dorneles diz: “Embora informe que Davi tenha dançado (1Cr 15:29), o cronista repete várias vezes a lista de instrumentos, que não sugere uma música feita para dançar.”

Talvez a música não tenha sido feita para dançar, mas provocou dança, e Davi dançou seguindo o ritmo da música, como diz Ellen White: Davi estava “acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico”. Se ele acompanhava o ritmo, o andamento da banda, era porque a música era propícia para isso.

Falando sobre o fatídico 1º trajeto, Ellen White diz: “era seu intuito tornar aquele ato um espetáculo de grande regozijo e imponente manifestação.” Não era uma multidão seguindo um trio elétrico de carnaval. Ellen White diz que “Davi estava radiante de santo zelo.”

Ao contrário de Dorneles, ao falar da música do primeiro transporte, Ellen White não usa expressões negativas. Ela descreve essa música como “cânticos de regozijo, unindo-se melodiosamente uma multidão de vozes com o som de instrumentos músicos”. Era “uma cena de triunfo”, com “alegria solene”(Patriarcas e Profetas, 704). As palavras "melodiosamente" e "solene" devem ser destacadas.

Agora veja como Dorneles faz uma leitura tendenciosamente negativa da música do episódio:
"A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de tambores, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

No entanto, levando em conta a informação bíblica e de Ellen White, esse parágrafo acima poderia ser reescrito assim:
“A música que deu o ritmo da dança de Davi, sem flautas, foi chamada de “música de Deus” (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que acompanhou a “cena de triunfo”, "melodiosamente" com “alegria solene”, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

Esse parágrafo está perfeito, segundo a Bíblia e Ellen White, e tem um tom diametralmente oposto ao que Dorneles escreveu. Percebam como a argumentação de Dorneles é frágil e depende de contorcionismos linguísticos, mensagens nas entrelinhas, jogo de palavras, omissão de trechos (que é o próximo item).

5) Dorneles omite pedaços de textos bíblicos
Além de omitir as flautas em sua argumentação contra os tambores, Dorneles faz citações estranhas, amputadas, para dar uma impressão de que a Bíblia condena apenas os tambores. Por exemplo, ele escreveu:
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com tambores (ver Isaías 5:12 e 24:8 e 9).”

E completa dizendo que “os textos de Isaías 5:12 e 24:8 e 9 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

O problema é que esses textos também falam de harpas, alaúdes e flautas. Por que extrair cirurgicamente apenas os tambores, dando-lhes uma conotação negativa? Veja os textos bíblicos na íntegra:

Harpas e liras, tamborins, flautas e vinho há em suas festas, mas não se importam com os atos do Senhor, nem atentam para obra que as suas mãos realizam.” (Is 5:12)
“O som festivo dos tamborins foi silenciado, o barulho dos que se alegram parou, a harpa cheia de júbilo está muda. Já não bebem vinho entoando canções; a bebida fermentada é amarga para os que a bebem.” (Is 24:8-9)

Os leitores menos atentos e não-bereanos são induzidos por Dorneles a concluir que Deus está pronunciando juízos apenas contra quem usa tambores, o que não é verdade. A menos que Dorneles também esteja publicando textos contra esses outros instrumentos por aí, o que não é o caso, essa é uma péssima maneira de usar a Bíblia.

Continua...

3 comentários:

  1. Isso aí!!! Mais um artigo safado e tendencioso para manter a bateria longe da igreja e dos cultos. Cada vez que leio algo parecido mais fico convicto de que na adoração existem apenas dois elementos, a saber, o adorador e o adorado. Nem Dorneles E nem pastores tem a aprovação divina pra ditar o ritmo da música na igreja. Nem Deus colocou barreiras a instrumentos. VALEI-ME NOSSA SENHORA WHITE!!!!

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  2. No lugar da palavra "artigo" leia-se livro.

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  3. Olá Vanessa.
    Parabéns pelo seu Blog. Além de Pastor também sou músico e amante da boa música. Sou Bacharel em Teologia e m Música Sacra pelo SETEBES- ES.
    Sobre o artigo acima, concordo com vc sobre as distorções e imprecisões na interpretação do texto sagrado.
    Uma vez preguei sobre este episódio só que em outro texto: 2 Samuel 6. 1-11
    Minha interpretação sobre a morte de Uzá nada tem a ver com a liturgia, ou instrumentos, etc.
    Se lermos alguns capítulos antes, veremos que a arca estava na casa dele há pelo menos 25 anos. Conjecturas minhas e não do texto agora:"Imagino que usá fosse um bebê ou uma criança, que, convivendo tanto tempo com a arca dentro de casa, perdeu a noção do que ela representava, do quão santa era... tornou-se mais um objeto de adorno na sua casa. O temor do Senhor e o entendimento de como deveriam transportar a arca ficaram no esquecimento. A morte de Uzá foi resultado da falta de sabedoria, porque a palavra nos diz: "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria." (Provérbios 1:7a)

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